Lisa | 2013
A obra "Lisa" (2013) de Alexandre Mury se insere em uma longa tradição de releituras da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, mas se distingue por seu caráter performático, autorreferencial e conceitual. Mury se apropria da imagem icônica não apenas para reinterpretá-la visualmente, mas para questionar as noções de identidade, gênero, originalidade e temporalidade. Sua abordagem transcende o "tableau vivant", propondo um diálogo dinâmico entre o corpo, a imagem e a história da arte.
A Mona Lisa de Leonardo da Vinci (1503-1519) tornou-se o retrato mais emblemático da história da arte ocidental. Seu enigma reside na expressão ambígua da figura e na técnica refinada do sfumato, que suaviza as transições entre luz e sombra. Vasari, em "Vidas dos Artistas", já destacava o realismo e a vitalidade da obra, mencionando como Leonardo usou músicos e bufões para manter a modelo animada, resultando no sutil sorriso que a caracteriza.
Em "Lisa", Mury preserva a pose e o enquadramento clássico da Mona Lisa, mas a transfigura através da performatividade e da intervenção direta no próprio corpo. O artista se coloca no lugar da figura retratada, problematizando os limites entre representação e identidade. Ao realizar um ato de depilação durante a videoperformance, ele enfatiza a construção da imagem pública e as convenções de gênero, desafiando a noção de um retrato fixo e imutável.
A obra "Lisa" se desenvolve em múltiplas camadas, combinando fotografia, videoperformance e pintura cênica. O artista recria o fundo da Mona Lisa manualmente, inserindo-se em um espaço pictórico que ele mesmo constrói. Esse gesto sugere uma metalinguagem: Mury não apenas representa a Mona Lisa, mas reflete sobre o ato de representá-la.
A performatividade da depilação remete a processos de autoflagelo e automutilação, mas também à autorregeneração, evocando Frida Kahlo, que explorou a dor em seus autorretratos. A ação performática tensiona o tempo da obra: enquanto o retrato tradicional busca eternizar a imagem, Mury apresenta um processo em transformação, subvertendo a estaticidade do gênero do retrato.
A ausência de sobrancelhas na Mona Lisa original, muitas vezes atribuída a uma limpeza mal sucedida, é ressignificada na obra de Mury. Sua depilação é um ato de revisitação e de inscrição corporal, evidenciando como a imagem pode ser alterada, reinterpretada e, ao mesmo tempo, reconstruída.
A Mona Lisa tem sido alvo de inúmeras releituras ao longo dos séculos, desde a intervenção dadaísta de Marcel Duchamp, que adicionou um bigode e cavanhaque à figura em "L.H.O.O.Q" (1919), até as representações volumosas de Fernando Botero (1977) e as apropriações pop de Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat (1983). Mury se insere nesse contexto, mas sua abordagem é profundamente pessoal e corporal, aproximando-se da arte performática e do body art.
Sua obra também dialoga com a artista Cindy Sherman, que em "Untitled #209" (1989) se apropriou da imagem da Mona Lisa para questionar construções de identidade e representação feminina. Como Sherman, Mury não apenas recria a imagem, mas problematiza seu significado, inserindo-se na tradição das artes multimídia e da transdisciplinaridade.
A obra de Mury é carregada de simbolismos e intertextualidade. Seu diálogo com Giorgio Vasari — que descreveu Leonardo da Vinci como um artista que transcendia a mera imitação da natureza — ressalta a própria intenção de Mury de ultrapassar a simples releitura para propor novos questionamentos.
O título "Lisa" também é um jogo de palavras: remete ao nome da Mona Lisa original, mas também sugere um tom jocoso, que ressoa com La Gioconda. Esse trocadilho ressoa com a ambiguidade da obra, que oscila entre a homenagem e a subversão, entre a tradição e a desconstrução.
"Lisa" (2013) de Alexandre Mury é uma obra que expande os limites da releitura artística. Ao incorporar elementos de performance, fotografia e videografia, o artista desafia a ideia de um retrato estático, transformando a Mona Lisa em um campo de investigação sobre identidade, gênero e temporalidade. Sua obra não apenas dialoga com a história da arte, mas também propõe uma reflexão sobre a própria construção das imagens e suas interpretações ao longo do tempo. Assim, "Lisa" não é apenas uma releitura da Mona Lisa, mas uma poderosa declaração sobre a arte como um processo vivo e em constante transformação.
Videoperfomance
"Lisa", 2013 (videoarte)
Photography/ Script / Director: Alexandre Mury | Music: Antonio Vivaldi – “La Stravaganza” – Concerto No. 2 RV279
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A vida dos Artistas [trecho]
— por Giogio Vasari
❝ Leonardo fez, para Francesco del Giocondo, o retrato de Monalisa, sua esposa, trabalhou quatro anos nele, e deixou inacabado. Esta obra, hoje, está com o rei Francisco da França, em Fontanebleu. Quem quiser ver até que ponto a arte consegue imitar a natureza. Poderá compreende-lo facilmente observando aquele semblante. Pois nele estão reproduzidas todas as minúcias que é possível pintar com sutileza. Os olhos têm o brilho e a umidade que se costumam ver nos seres vivos, e em torno deles percebem-se zonas lívidas e rosadas, assim como pelos, coisas que não é possível fazer sem muita sutileza. Os cílios, representados no modo como nascem na carne, ora mais densos, ora mais ralos, obedecendo ao giro dos poros, não poderiam ser mais naturais. O nariz, com aquelas belas narinas róseas tenras, parece estar vivo. A boca, cuja fenda termina em cantos de um vermelho que une à carnação do rosto, na verdade, não parece feita de tintas, mas de carne. Na base de seu pescoço, quem olhar atentamente verá a pulsação das artérias: pode-se dizer que essa pintura foi feita de uma maneira capaz de causar medo e temor a qualquer artista valente, fosse ele qual fosse.
Leonardo valeu-se do seguinte artifício, Enquanto retratava a Mona Lisa, que era belíssima, por perto sempre havia pessoas a tocar ou cantar, bem como bufões que a mantinham alegre, para eliminar aquela melancolia tão frequente na pintura e nos retratos que se fazem. E, nesse retrato feito por Leonardo, há um sorriso tão agradável que mais parece coisa divina que humana, tão admirável por não ser diferente do natural. ❞
GIORGIO VASARI — "Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, de Cimabue até nossos dias" (título original).
Arte Multimédia
Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade
O corpo e o hibridismo das linguagens
_________________________________Lisa e Jocosa
Declaração do artista
Não é comum acontecer assim, mas a minha versão da Gioconda veio de um sonho. Acordei e anotei a ideia. Fiquei por muitos anos resistindo para não realizar este trabalho, por achar que a releitura deste ícone já estava banalizado. Eu não estava encontrando nada que pudesse argumentar a possível "releitura". E aconteceu, involuntariamente, sonhando — um embate com o surreal, algo que remetia a um autoflagelo e automutilação, mas também, à autorregeneração. Seriam insights espontâneos para realizar uma obra com a vertente do body art.
Andei lendo exaustivamente inúmeras teorias e especulações em torno do retrato mais conhecido do mundo — aquele monte de informação perturbou meu sono. A minha vontade era superar julgamentos genéricos que aprisionam as releituras na ideia limitada de "tableau vivant"; eu me aproprio de uma referência compositiva, faço um diálogo com esse registro do passado, com a intensão, de trazer questionamentos contemporâneos. Embora, este esforço não seja necessário.
❝ We often invent the future out of fragments from the past. ❞ — Erwin Panofsky.
Quando, na adolescência, eu pintava, gostava tanto de tinta que me sujava de propósito. A minha maturidade artística veio quando eu fui me permitindo, cada vez mais, experimentações e entregas. Por vezes, apareço com o corpo pintado — Eu sempre quis entrar no quadro. Meu corpo é o meu objeto de trabalho, minha alma imersa na fotografia é um desejo de experiência prazerosa. Porém, a cada obra nova, eu me abandono, me recrio como pessoa, isso me causa algum sofrimento — é um desapego. A experiência de se colocar no lugar do outro é o que, de mais especial, tem no meu trabalho. Pouco me importa quem foi a Mona Lisa, mas estou ali caracterizado de mulher — O que é ser mulher? — O que é ser homem? — O que é "ser"? — Quem eu sou? — Somos artífices de nós mesmos? — As aparências enganam? — O que é cópia? — O que é originalidade?
A beleza é deslocada daquilo que eu vejo para aquilo que eu não vejo. O bom apreciador de arte não se contenta com o que vê. O próprio Leonardo da Vinci disse « La pittura e cosa mentale » "L' Arte e cosa mentale". Não consigo evitar a citação de outras obras em um só trabalho. Um olhar mais atento de expectador perscrutador poderá enxergar muito mais do que aquilo que declaro ou deixo tácito.
"(...) a arte do passado é arte, no sentido pleno da palavra, enquanto, ainda, está presente, que ainda, fertiliza e inova. Quando efetivamente se torna um mero passado, perde sua eficácia estritamente estética e sugere emoções de substância arqueológica. Sem dúvida, estes são o motivo de grande prazer; mas não pode ser confundido ou substituído pelo próprio prazer estético. A arte do passado não é 'arte', 'foi' arte" (ORTEGA, 1970, p. 74).
Ao Realizar uma 'performance' me depilando, diante de uma câmera e um espelho, fui transmutando — multifacetado em um espetáculo com o propósito claro de assuntar a temporalidade. Foi a primeira obra que resolvi conceber 'videografada'. Muitas pessoas disseram que era o make of da fotografia. Esta empreitada resultou, também, em uma fotografia. Tanto o video, quanto a fotografia tem o título de "Lisa" (trocadilho jocoso), embora tenha sido tão sofrido. Portanto, acredito que a confusão entre o documental e o dramático na 'videoperfomance' seja legítima.
O meu primeiro interesse pela arte, desde a infância, começou pelos autorretratos. A minha mãe ensinou-me, aos 3 anos, a contornar a mão, com um lápis, e obter o desenho incrível de uma parte de mim. Por isso, gosto de lembrar de uma alegoria do autorretrato, feito pelo Giorgio Vasari, demonstrando um artista contornando a própria sombra na parede. Mas naquela idade eu era chamado de "meu Van Gogh", pela professora do jardim de infância (tia Dolores). Eu sentia orgulho, pela distinção e comparação, todavia, mais tarde, na adolescência, fiquei assombrado ao saber da história da orelha. Cabe, agora, situar outra referência importante como a Frida Khalo, que tanto retratou a autoimagem e se torna outro artista influente na minha formação.
❝ Mira que si te quise fue por tu pelo, ahora que estás pelona ya no te quiero. ❞
Um turbilhão de referências está o tempo todo reconfigurando projeções indisciplinadas. Contudo, jamais diria: aleatórias. De História da Arte a Teorias Diversas, de Memórias Afetivas a Especulações Vulgares... se eu misturo a cena da navalha no olho vista em "O Cão Andaluz", com a remoção das sobrancelhas da Mona Lisa em uma limpeza mal sucedida da pintura e o retrato da Frida cortando os cabelos eu me vejo em um processo desencadeador de ideias que não é organizado e heurístico. Entre desaparecimentos e adulterações da Mona Lisa, revê-la é relê-la — inevitavelmente.
Alexandre Mury, Brasil, outubro, de 2022
O Estúdio do Artista, 1665
Jan Vermeer
Autorretrato com cabelo cortado, 1940 Frida Kahlo
Autorretrato, 1561-1569
Giorgio Vasari
Mona Lisa,1997
Sofie Matisse
Título: Retrato de Mona Lisa, Portrait of Lisa Gherardini, wife of Francesco del Giocondo, known as "Monna Lisa, la Gioconda" or "Mona Lisa", 1503-1519
Criador: Leonardo di ser Piero DA VINCI, dit Léonard de Vinci (1452 - 1519), Paris, musée du Louvre
Mona Lisa ("Senhora Lisa") também conhecida como A Gioconda (em italiano: La Gioconda, "a sorridente"; em francês, La Joconde) ou ainda Mona Lisa del Giocondo ("Senhora Lisa esposa de Giocondo")
Saiba + em:
Data de criação: 1503/1519
Local de criação: Florence, Italie
Dimensões físicas: 77 x 53 cm.
Meio: Oil on canvas
Idioma original: French
Procedência: France, Paris, musée du Louvre-Acquis par François Ier en 1518.
Fonte original: Paris, Louvre Museum
Direitos: France, Paris, musée du Louvre-Acquis par François Ier en 1518. Photo © RMN-Grand Palais (musée du Louvre) / Michel Urtado
Vidas dos artistas
Autor: Giorgio Vasari
Tradutor: Ivone Castilho Benedetti
Editora : WMF Martins Fontes - POD; 1ª edição (9 dezembro 2020)
Idioma: Português
Capa comum : 856 páginas
ISBN-10: 6586016355
ISBN-13: 978-6586016352
Dimensões: 24 x 17.2 x 4.4 cm
Publicado pela primeira vez em Florença em 1550, este livro é considerado a obra inaugural da história da arte e fonte escrita indispensável para quem quer se familiarizar com a arte do Renascimento italiano e seus protagonistas. Vasari, pintor e arquiteto, nos oferece o relato das biografias dos mais célebres artistas do Renascimento italiano. A esta edição, com prefácio de Giovanni Previtalli e organização e notas de Luciano Bellosi e Aldo Rossi, que reproduz integralmente a edição de 1550, se acrescentam um índice de nomes e outro de lugares e obras que facilitam a localização das obras a que Vasari faz referência.
Estúdio do artista
Outras releituras famosas
Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q, 1964
“Quando o Dada estava a todo vapor e estávamos demolindo muitas coisas, a Mona Lisa se tornou a principal vítima. Coloquei um bigode e um cavanhaque no rosto simplesmente com a ideia de profaná-la." — Marcel Duchamp
Mona Lou, Rubens Gerchman, 1975
Serigrafia inspirada por uma personagem real, Maria de Lourdes de Oliveira, a Lou, que causou furor naquela década ao matar um ex-namorado, a obra mistura a tela A Negra, de Tarsila do Amaral, e a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.
Fernando Botero - Mona Lisa, 1977
As figuras volumosas fazem parte da identidade estética do artista colombiano. A releitura bem humorada da Mona Lisa permanece com a mesma posição e o semelhante sorriso enigmático. O artista desde o início da carreira nos 1950s dedicava-se a criar a suas próprias versões de obras famosas.
Jean-Michel Basquiat, Mona Lisa, 1983
O artista realiza esta releitura associando a Monalisa com a conhecida imagem de George Washington estampada nos dólares americanos. Dessa forma, o artista enfatizou o status da arte contemporânea como uma espécie de moeda.
Cindy Sherman habilmente se imerge na persona da Mona Lisa, envolvendo-se com a essência etérea e enigmática que caracteriza a obra original de Leonardo da Vinci. No entanto, é importante notar que essa representação não é uma mera duplicata da Mona Lisa; ao desviar-se sutilmente da fidelidade estrita ao original, Sherman introduz uma camada de ambiguidade e complexidade na obra. A distância entre o real e a imitação se torna perceptível, mas ainda assim há uma sensação inquietante de semelhança. Isso incita os espectadores a reconsiderarem sua percepção do original.
Pesquisa e referências — 👁
'La Joconde' du Louvre tem sobrancelhas e cílios quase imperceptíveis, que poderiam ter sido apagados em cada limpeza realizada na pintura.
É o retrato mais famoso do mundo, o de Mona Lisa, esposa do comerciante de tecidos florentino Francesco del Giocondo, apelidado de “Gioconda” afrancesada La Joconde. Pintada em frente a uma paisagem distante, a Mona Lisa olha para nós, seu lendário sorriso nos lábios. Mas, além de sua expressão, é a técnica do sfumato que lhe confere essa presença particular: Leonardo da Vinci sobrepôs finas camadas de tinta para criar formas enquanto atenua contornos e contrastes. O artista captura o momento em que Monna Lisa se volta para o espectador. É esse movimento tão natural que dá uma impressão de vida à pintura.
Em 21 de agosto de 1911, o pânico eclodiu no Louvre... a Mona Lisa havia desaparecido! A notícia se espalhou como fogo e recompensas generosas foram prometidas para seu retorno – mas tudo em vão. Nada foi ouvido sobre a pintura por mais de dois anos. Então, um dia, Vincenzo Peruggia, um vidraceiro que trabalhou no Louvre, tentou vender a pintura mais famosa do mundo para um negociante de arte italiano... que alertou as autoridades. Assim, a Mona Lisa foi recuperada – e sua fama foi ainda maior.
'La Gioconda' del Prado foi pintada por um discípulo de Leonardo em seu estúdio. Especialistas dizem que foi pintado ao mesmo tempo que o original.
Pascal Cotte, um engenheiro francês, em outubro de 2007, diz ter descoberto, utilizando uma câmera de alta definição, que Leonardo da Vinci fez originalmente sobrancelhas e pestanas, na pintura da Mona Lisa. Ampliado o rosto de Mona Lisa 24 vezes, Cotte diz ter encontrado resquícios de pinceladas acima dos olhos que representam cílios e sobrancelhas.
Repercussão
Obra importante para compreender o processo criativo obteve relevância para o debate crítico da trajetória do artista .
"Antena Coletiva"programa do dia 23/08/2013[ A matéria aparece a partir do minuto 10m30s ]