Na interseção entre tradição e inovação, a obra "Lisa" (2013) emerge como uma releitura multifacetada da "Mona Lisa" de Leonardo da Vinci, transcendendo a mera imitação para se tornar um campo de investigação sobre identidade, temporalidade e representação. Composta por uma fotografia em C-print de 66 x 100 cm e uma videoperformance de cerca de quatro minutos e cinco segundos, a peça se desdobra – é híbrida – e integra elementos de fotografia, vídeo e body art, criando uma narrativa visual que dialoga com o passado enquanto questiona o presente. Formalmente, a composição preserva o enquadramento clássico da pintura renascentista: a figura centralizada em três-quartos, com mãos cruzadas sobre o colo e um fundo paisagístico que evoca as montanhas distantes e os rios serpenteantes da original. Contudo, essa fidelidade é subvertida pela intervenção performática, onde o ato de depilação facial se torna o eixo central, transformando o retrato estático em um processo dinâmico de transformação corporal.
O vídeo "Lisa" combina realismo fotográfico com técnicas de performance, pensada como um acontecimento – uma autoproposta de desafio – que possui começo, meio e fim. Na videoperformance, uma ação metalinguística movimenta a pintura e a fotografia, indo muito além do gesto corporal: a textura viva, o suor da pele irritada e a tensão da lâmina raspando, tudo isso acompanhado pela música barroca de Antonio Vivaldi, especificamente o "Concerto No. 2 RV279" de "La Stravaganza". Essa escolha musical não é aleatória; ela cria um contraponto temporal, unindo o renascentismo ao barroco, enquanto a edição lenta permite que o espectador acompanhe a metamorfose em tempo real. Assim, surge uma fricção temporal, como se o tempo histórico e o cronológico fossem convocados, evocando a teoria da relatividade e o espaço-tempo em um embaralhamento poético performativo. A obra confronta o espectador não com uma expressão enigmática, mas com a vulnerabilidade de um ato de autoflagelação e regeneração que recria estórias e história.
O fundo, pintado manualmente, opera como um palimpsesto, reescrevendo o cenário da original em um gesto metalinguístico que reflete sobre o ato de representação. Essa prática remete ao mito da jovem de Corinto, que traçou a sombra de seu amado, e aos autorretratos de pintores diante de espelhos, agora atualizados com câmera digital e controle remoto. A paleta – tons terrosos, verdes suaves e pretos profundos – mantém a harmonia renascentista, mas as texturas corporais contrastam com a imobilidade pictórica, desafiando uma masculinidade grotesca em favor de uma androginia que questiona binários de gênero. A depilação de sobrancelhas, barba e cabelo transforma o retrato em um espelho de indagações identitárias, posicionando "Lisa" como uma extensão estilística que interroga os limites entre o fixo e o efêmero.
No contexto histórico, "Lisa" se insere na linhagem de releituras da "Mona Lisa", cuja aura foi amplificada pelo roubo de 1911 por Vincenzo Peruggia, que elevou a pintura a ícone global com mais eficácia do que a descrição feita por Giorgio Vasari em "Vidas dos Artistas" (1550), onde relata uma obra que imita a natureza com sutileza – olhos úmidos, narinas rosadas e um sorriso divino. A original de Da Vinci (1503-1519) tem sido reinterpretada ao longo dos séculos. No modernismo, Marcel Duchamp profanou-a em "L.H.O.O.Q." (1919), adicionando bigode e cavanhaque para criticar a sacralidade artística; Fernando Botero, em 1977, ampliou suas formas em uma versão volumosa e humorística; Jean-Michel Basquiat, em 1983, associou-a ao dólar americano, comentando o comércio cultural; e Cindy Sherman, em "Untitled #209" (1989), explorou construções de identidade feminina através do disfarce.
Produzida em 2013, "Lisa" reflete o contexto da arte contemporânea brasileira, influenciada pela herança performática de Hélio Oiticica e Lygia Clark, que enfatizavam o corpo como veículo de expressão em um pós-ditadura marcado por hibridismo cultural e antropofagia oswaldiana. Exibida na mostra "Fricções Históricas" na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, sob curadoria de Vanda Klabin, a obra dialoga com debates globais sobre gênero, impulsionados pela teoria queer de Judith Butler, que concebe o gênero como ato performativo. A depilação ressignifica a ausência de sobrancelhas na "Mona Lisa" – apoiando-se em uma versão anedótica atribuída a limpezas mal sucedidas, como sugerido por Pascal Cotte em 2007, que identificou resquícios de cílios e sobrancelhas em análises ampliadas. Essa ressignificação transforma uma deterioração acidental em um gesto intencional. Mury adiciona camadas, hibridizando dramaturgias e fazendo conexões insuspeitas, segundo o próprio artista, ecoa a obra surrealista de Luis Buñuel em "O Cão Andaluz" (1929), onde a navalha simboliza corte e revelação.
Nesse fluxo narrativo, a interpretação de "Lisa" revela atravessamentos transdisciplinares que enriquecem sua tese central: a arte como processo vivo, capaz de reinventar o passado para questionar o presente. O ato de depilação, inspirado em um sonho do artista, evoca autoflagelação e autorregeneração, ecoando Erwin Panofsky ao afirmar que "inventamos o futuro a partir de fragmentos do passado". Aqui, o body art se entrelaça com a história da arte: influências de Frida Kahlo, em "Autorretrato com Cabelo Cortado" (1940), onde a dor corporal reflete crises identitárias, e de Cindy Sherman, que problematiza a representação feminina. O diálogo com Vasari reforça a reflexão sobre a pintura como "coisa mental", mas "Lisa" subverte isso ao priorizar o corporal como matéria pensante – um ritual de autoconhecimento.
Transdisciplinarmente, a obra cruza fronteiras: os títulos são trocadilhos, como "La Gioconda" (a sorridente), introduzindo ambiguidade jocosa; "Lisa" (depilada) é pura ironia e parte constitutiva da obra, em meio ao sofrimento, oscilando entre homenagem e subversão. A temporalidade é pivotal: enquanto o retrato renascentista busca eternizar, "Lisa" enfatiza o efêmero, contrastando com José Ortega y Gasset, que distingue a arte viva da arte arqueológica, afirmando que a arte do passado não é arte, foi arte. Essa tese posiciona a obra como um espelho multifacetado, onde identidade fluida e hibridismo cultural desafiam a estaticidade tradicional.
Por fim, o impacto de "Lisa" ressoa na arte contemporânea, influenciando debates sobre performance e identidade. A obra contribui para discussões sobre corpos dissidentes; internacionalmente, dialoga com Duchamp e Sherman, reforçando a tradição crítica. Seu corpo depilado, suspenso entre ironia e vulnerabilidade, como um gesto que rasura e reescreve. Não responde, mas pergunta: o que resta quando a imagem se dissolve no ato? Como um traço que se apaga para se redesenhar, a obra convida a habitar o intervalo entre o que foi e o que pode vir a ser, um espaço onde a arte não é fim, mas fricção contínua.
Videoperfomance
"Lisa", 2013 (videoarte)
Photography/ Script / Director: Alexandre Mury | Music: Antonio Vivaldi – “La Stravaganza” – Concerto No. 2 RV279
A vida dos Artistas [trecho]
— por Giogio Vasari
❝ Leonardo fez, para Francesco del Giocondo, o retrato de Monalisa, sua esposa, trabalhou quatro anos nele, e deixou inacabado. Esta obra, hoje, está com o rei Francisco da França, em Fontanebleu. Quem quiser ver até que ponto a arte consegue imitar a natureza. Poderá compreende-lo facilmente observando aquele semblante. Pois nele estão reproduzidas todas as minúcias que é possível pintar com sutileza. Os olhos têm o brilho e a umidade que se costumam ver nos seres vivos, e em torno deles percebem-se zonas lívidas e rosadas, assim como pelos, coisas que não é possível fazer sem muita sutileza. Os cílios, representados no modo como nascem na carne, ora mais densos, ora mais ralos, obedecendo ao giro dos poros, não poderiam ser mais naturais. O nariz, com aquelas belas narinas róseas tenras, parece estar vivo. A boca, cuja fenda termina em cantos de um vermelho que une à carnação do rosto, na verdade, não parece feita de tintas, mas de carne. Na base de seu pescoço, quem olhar atentamente verá a pulsação das artérias: pode-se dizer que essa pintura foi feita de uma maneira capaz de causar medo e temor a qualquer artista valente, fosse ele qual fosse.
Leonardo valeu-se do seguinte artifício, Enquanto retratava a Mona Lisa, que era belíssima, por perto sempre havia pessoas a tocar ou cantar, bem como bufões que a mantinham alegre, para eliminar aquela melancolia tão frequente na pintura e nos retratos que se fazem. E, nesse retrato feito por Leonardo, há um sorriso tão agradável que mais parece coisa divina que humana, tão admirável por não ser diferente do natural. ❞
GIORGIO VASARI — "Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, de Cimabue até nossos dias" (título original).
Arte Multimédia
Não é comum acontecer assim, mas a minha versão da Gioconda veio de um sonho. Acordei e anotei a ideia. Fiquei por muitos anos resistindo para não realizar este trabalho, por achar que a releitura deste ícone já estava banalizado. Eu não estava encontrando nada que pudesse argumentar a possível "releitura". E aconteceu, involuntariamente, sonhando — um embate com o surreal, algo que remetia a um autoflagelo e automutilação, mas também, à autorregeneração. Seriam insights espontâneos para realizar uma obra com a vertente do body art.
Andei lendo exaustivamente inúmeras teorias e especulações em torno do retrato mais conhecido do mundo — aquele monte de informação perturbou meu sono. A minha vontade era superar julgamentos genéricos que aprisionam as releituras na ideia limitada de "tableau vivant"; eu me aproprio de uma referência compositiva, faço um diálogo com esse registro do passado, com a intensão, de trazer questionamentos contemporâneos. Embora, este esforço não seja necessário.
❝ We often invent the future out of fragments from the past. ❞ — Erwin Panofsky.
Quando, na adolescência, eu pintava, gostava tanto de tinta que me sujava de propósito. A minha maturidade artística veio quando eu fui me permitindo, cada vez mais, experimentações e entregas. Por vezes, apareço com o corpo pintado — Eu sempre quis entrar no quadro. Meu corpo é o meu objeto de trabalho, minha alma imersa na fotografia é um desejo de experiência prazerosa. Porém, a cada obra nova, eu me abandono, me recrio como pessoa, isso me causa algum sofrimento — é um desapego. A experiência de se colocar no lugar do outro é o que, de mais especial, tem no meu trabalho. Pouco me importa quem foi a Mona Lisa, mas estou ali caracterizado de mulher — O que é ser mulher? — O que é ser homem? — O que é "ser"? — Quem eu sou? — Somos artífices de nós mesmos? — As aparências enganam? — O que é cópia? — O que é originalidade?
A beleza é deslocada daquilo que eu vejo para aquilo que eu não vejo. O bom apreciador de arte não se contenta com o que vê. O próprio Leonardo da Vinci disse « La pittura e cosa mentale » "L' Arte e cosa mentale". Não consigo evitar a citação de outras obras em um só trabalho. Um olhar mais atento de expectador perscrutador poderá enxergar muito mais do que aquilo que declaro ou deixo tácito.
"(...) a arte do passado é arte, no sentido pleno da palavra, enquanto, ainda, está presente, que ainda, fertiliza e inova. Quando efetivamente se torna um mero passado, perde sua eficácia estritamente estética e sugere emoções de substância arqueológica. Sem dúvida, estes são o motivo de grande prazer; mas não pode ser confundido ou substituído pelo próprio prazer estético. A arte do passado não é 'arte', 'foi' arte" (ORTEGA, 1970, p. 74).
Ao Realizar uma 'performance' me depilando, diante de uma câmera e um espelho, fui transmutando — multifacetado em um espetáculo com o propósito claro de assuntar a temporalidade. Foi a primeira obra que resolvi conceber 'videografada'. Muitas pessoas disseram que era o make of da fotografia. Esta empreitada resultou, também, em uma fotografia. Tanto o video, quanto a fotografia tem o título de "Lisa" (trocadilho jocoso), embora tenha sido tão sofrido. Portanto, acredito que a confusão entre o documental e o dramático na 'videoperfomance' seja legítima.
O meu primeiro interesse pela arte, desde a infância, começou pelos autorretratos. A minha mãe ensinou-me, aos 3 anos, a contornar a mão, com um lápis, e obter o desenho incrível de uma parte de mim. Por isso, gosto de lembrar de uma alegoria do autorretrato, feito pelo Giorgio Vasari, demonstrando um artista contornando a própria sombra na parede. Mas naquela idade eu era chamado de "meu Van Gogh", pela professora do jardim de infância (tia Dolores). Eu sentia orgulho, pela distinção e comparação, todavia, mais tarde, na adolescência, fiquei assombrado ao saber da história da orelha. Cabe, agora, situar outra referência importante como a Frida Khalo, que tanto retratou a autoimagem e se torna outro artista influente na minha formação.
❝ Mira que si te quise fue por tu pelo, ahora que estás pelona ya no te quiero. ❞
Um turbilhão de referências está o tempo todo reconfigurando projeções indisciplinadas. Contudo, jamais diria: aleatórias. De História da Arte a Teorias Diversas, de Memórias Afetivas a Especulações Vulgares... se eu misturo a cena da navalha no olho vista em "O Cão Andaluz", com a remoção das sobrancelhas da Mona Lisa em uma limpeza mal sucedida da pintura e o retrato da Frida cortando os cabelos eu me vejo em um processo desencadeador de ideias que não é organizado e heurístico. Entre desaparecimentos e adulterações da Mona Lisa, revê-la é relê-la — inevitavelmente.
O Estúdio do Artista, 1665
Jan Vermeer
Autorretrato com cabelo cortado, 1940 Frida Kahlo
Autorretrato, 1561-1569
Giorgio Vasari
Mona Lisa,1997
Sofie Matisse
Título: Retrato de Mona Lisa, Portrait of Lisa Gherardini, wife of Francesco del Giocondo, known as "Monna Lisa, la Gioconda" or "Mona Lisa", 1503-1519
Criador: Leonardo di ser Piero DA VINCI, dit Léonard de Vinci (1452 - 1519), Paris, musée du Louvre
Mona Lisa ("Senhora Lisa") também conhecida como A Gioconda (em italiano: La Gioconda, "a sorridente"; em francês, La Joconde) ou ainda Mona Lisa del Giocondo ("Senhora Lisa esposa de Giocondo")
Saiba + em:
Data de criação: 1503/1519
Local de criação: Florence, Italie
Dimensões físicas: 77 x 53 cm.
Meio: Oil on canvas
Idioma original: French
Procedência: France, Paris, musée du Louvre-Acquis par François Ier en 1518.
Fonte original: Paris, Louvre Museum
Direitos: France, Paris, musée du Louvre-Acquis par François Ier en 1518. Photo © RMN-Grand Palais (musée du Louvre) / Michel Urtado
Vidas dos artistas
Autor: Giorgio Vasari
Tradutor: Ivone Castilho Benedetti
Editora : WMF Martins Fontes - POD; 1ª edição (9 dezembro 2020)
Idioma: Português
Capa comum : 856 páginas
ISBN-10: 6586016355
ISBN-13: 978-6586016352
Dimensões: 24 x 17.2 x 4.4 cm
Publicado pela primeira vez em Florença em 1550, este livro é considerado a obra inaugural da história da arte e fonte escrita indispensável para quem quer se familiarizar com a arte do Renascimento italiano e seus protagonistas. Vasari, pintor e arquiteto, nos oferece o relato das biografias dos mais célebres artistas do Renascimento italiano. A esta edição, com prefácio de Giovanni Previtalli e organização e notas de Luciano Bellosi e Aldo Rossi, que reproduz integralmente a edição de 1550, se acrescentam um índice de nomes e outro de lugares e obras que facilitam a localização das obras a que Vasari faz referência.
Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q, 1964
Mona Lou, Rubens Gerchman, 1975
Fernando Botero - Mona Lisa, 1977
Jean-Michel Basquiat, Mona Lisa, 1983
Cindy Sherman habilmente se imerge na persona da Mona Lisa, envolvendo-se com a essência etérea e enigmática que caracteriza a obra original de Leonardo da Vinci. No entanto, é importante notar que essa representação não é uma mera duplicata da Mona Lisa; ao desviar-se sutilmente da fidelidade estrita ao original, Sherman introduz uma camada de ambiguidade e complexidade na obra. A distância entre o real e a imitação se torna perceptível, mas ainda assim há uma sensação inquietante de semelhança. Isso incita os espectadores a reconsiderarem sua percepção do original.
É o retrato mais famoso do mundo, o de Mona Lisa, esposa do comerciante de tecidos florentino Francesco del Giocondo, apelidado de “Gioconda” afrancesada La Joconde. Pintada em frente a uma paisagem distante, a Mona Lisa olha para nós, seu lendário sorriso nos lábios. Mas, além de sua expressão, é a técnica do sfumato que lhe confere essa presença particular: Leonardo da Vinci sobrepôs finas camadas de tinta para criar formas enquanto atenua contornos e contrastes. O artista captura o momento em que Monna Lisa se volta para o espectador. É esse movimento tão natural que dá uma impressão de vida à pintura.
Em 21 de agosto de 1911, o pânico eclodiu no Louvre... a Mona Lisa havia desaparecido! A notícia se espalhou como fogo e recompensas generosas foram prometidas para seu retorno – mas tudo em vão. Nada foi ouvido sobre a pintura por mais de dois anos. Então, um dia, Vincenzo Peruggia, um vidraceiro que trabalhou no Louvre, tentou vender a pintura mais famosa do mundo para um negociante de arte italiano... que alertou as autoridades. Assim, a Mona Lisa foi recuperada – e sua fama foi ainda maior.
'La Gioconda' del Prado foi pintada por um discípulo de Leonardo em seu estúdio. Especialistas dizem que foi pintado ao mesmo tempo que o original.
Pascal Cotte, um engenheiro francês, em outubro de 2007, diz ter descoberto, utilizando uma câmera de alta definição, que Leonardo da Vinci fez originalmente sobrancelhas e pestanas, na pintura da Mona Lisa. Ampliado o rosto de Mona Lisa 24 vezes, Cotte diz ter encontrado resquícios de pinceladas acima dos olhos que representam cílios e sobrancelhas.