Detalhes / OBRA DE ARTE
Título: O pesadelo
Criador: Alexandre Mury
Data de criação: 2011
Tipo: fotografia
Meio: C-print (impressão cromogênica)
Período da Arte: Contemporâneo
Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Arte Performática
Assunto: autorretrato, fotografia, cor-de-rosa, monocromia, quarto de menina, cama, corpo masculino reclinado
Obras Relacionadas: "The Nightmare, (1781), Henry Fuseli
Artistas Relacionados: Henry Fuseli
⚿ Palavras-chave
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Em "O Pesadelo" (2011), Alexandre Mury apresenta uma performance fotográfica que reinterpreta a célebre pintura "The Nightmare" (1781) de Henry Fuseli. Na obra original, Fuseli retrata uma mulher adormecida em uma pose vulnerável, enquanto um íncubo sinistro repousa sobre seu peito, e uma figura equina fantasmagórica emerge ao fundo, simbolizando os terrores noturnos e os mistérios do subconsciente.
Mury transpõe essa atmosfera onírica para uma cena contemporânea, utilizando elementos que subvertem as expectativas do espectador. Em sua composição, o artista se retrata reclinado em uma cama adornada com lençóis cor-de-rosa, evocando um ambiente que sugere inocência e feminilidade. Essa escolha cromática contrasta com a inquietação presente na obra de Fuseli, criando uma tensão entre o cenário acolhedor e a inquietude implícita no título.
A pose de Mury, embora serena, carrega uma ambiguidade que convida à introspecção. Ao se posicionar em um quarto tipicamente associado a uma menina, o artista desafia as normas de gênero e explora a fluidez da identidade, temas recorrentes em seu trabalho. A ausência de figuras ameaçadoras, como o íncubo e o cavalo espectral de Fuseli, desloca o foco do medo externo para uma exploração mais introspectiva dos pesadelos internos e das ansiedades pessoais.
A releitura de Mury não apenas homenageia a obra de Fuseli, mas também a ressignifica, trazendo-a para o contexto contemporâneo e pessoal. Ao incorporar elementos de performance e autorretrato, ele convida o espectador a refletir sobre as camadas de significado presentes na interseção entre o consciente e o subconsciente, o real e o imaginário, o masculino e o feminino.
Em "O Pesadelo", Mury demonstra sua habilidade em fundir referências históricas da arte com questões atuais, criando uma obra que é ao mesmo tempo uma homenagem e uma crítica, uma reflexão sobre a natureza dos medos humanos e a construção da identidade.
A evocação onírica, assombrosa e erótica da pintura foi um enorme sucesso popular. Amplamente plagiada, as paródias eram comumente usadas para caricatura política. Fuseli pintou outras versões de O Pesadelo após o sucesso da primeira.
O Pesadelo de Fuseli reverberou entre os teóricos da psicologia do século XX. A pintura é considerada representativa dos instintos sexuais sublimados. Tanto o sono quanto os sonhos eram temas comuns para Henry Fuseli, "O pesadelo" destaca-se pela inspiração no folclore e ausência de referências diretas a temas literários ou religiosos.
Acreditava-se que o Íncubo era um diabo que possuía e praticava sexo com as mulheres que dormiam sozinhas. A obra lida com assuntos sobrenaturais, Fuseli jogava com os medos e instintos primitivos do espectador, destacando-se, numa época em que a reverência moralista era a base da pintura acadêmica britânica.
Esta obra é significativamente menor que a versão original de 1781. Apesar de seu tamanho reduzido, esta versão mantém os elementos centrais que tornaram a pintura icônica: uma mulher adormecida em uma pose dramática, um íncubo agachado sobre seu peito e a cabeça de um cavalo emergindo por entre as cortinas ao fundo. A composição vertical e o uso de tons escuros acentuam a atmosfera onírica e perturbadora da cena.
Esta versão é uma das várias que Fuseli criou, refletindo seu fascínio contínuo por temas relacionados a sonhos, pesadelos e o subconsciente. A obra foi exibida em diversas exposições, incluindo "Füssli: The Realm of Dreams and the Fantastic" no Musée Jacquemart-André em Paris, destacando sua importância no contexto do romantismo e do gótico na arte.
A segunda versão de O Pesadelo (Der Nachtmahr) é considerada a mais refinada entre as várias interpretações que o artista criou de sua obra mais famosa. Nesta versão, Füssli intensifica a atmosfera de ameaça e incompreensão por meio de um formato vertical e de uma paleta de cores pálidas. A jovem retratada jaz retorcida na cama, enquanto um íncubo — uma criatura demoníaca — agacha-se sobre seu peito, e um cavalo fantasmagórico enfia a cabeça por entre as cortinas ao fundo. Apesar de suas múltiplas alusões, a pintura não possui uma única fonte literária, mas expressa o fascínio de Füssli pelos sonhos de maneira que chocou o público contemporâneo.
A obra é uma fusão de elementos de arte, literatura, mitologia, folclore e medicina, refletindo as obsessões pessoais de Füssli. Essa combinação transforma a pintura em uma projeção atemporal de pesadelos, visões, erotismo, horror e loucura.
Nesta versão tardia de O Pesadelo, Füssli retoma os principais elementos visuais que consagraram a obra original de 1781, mas com variações sutis que reforçam o caráter espectral, introspectivo e psicológico da composição. A figura feminina continua estirada em estado de abandono onírico, evocando a vulnerabilidade do corpo adormecido. Sobre seu ventre, repousa o íncubo — símbolo das forças inconscientes, do erotismo reprimido e dos terrores noturnos —, enquanto, ao fundo, o cavalo de olhos esbugalhados emerge das sombras, fixando o espectador em um olhar hipnótico.
A tela de 1810 pode ser entendida como uma síntese madura da série, em que Füssli refina o equilíbrio entre o grotesco e o sublime. A atmosfera fantasmagórica é potencializada pela aplicação de uma paleta cromática reduzida e pela economia compositiva, que concentra a tensão dramática na oposição entre o corpo luminoso da mulher e as figuras sombrias que a cercam. Aqui, o pesadelo não se limita ao domínio do fantástico, mas se insinua como uma metáfora do inconsciente, antecipando os estudos posteriores da psicanálise.
Ao insistir no mesmo tema por quase três décadas, Füssli não apenas reafirma sua obsessão pessoal por sonhos, erotismo e forças ocultas, como também transforma O Pesadelo em um ciclo visual — uma meditação pictórica sobre o poder perturbador da mente humana adormecida. Esta versão de 1810 evidencia como a recorrência do motivo não implica repetição, mas sim um aprofundamento simbólico, que reflete a inquietude romântica diante do irracional e do invisível.
A pintura também circulou amplamente como uma gravura reprodutiva, sendo a mais famosa a de Thomas Burke, em 1783. Enquanto estudava arte nas academias de Praga, Viena e Munique, entre 1855 e 1867, Gabriel von Max provavelmente conheceu a obra de Füssli e fez esta cópia de "O Pesadelo".
A gravura retrata uma mulher esparramada sobre uma cama em estado de transe, com um íncubo demoníaco empoleirado em seu peito e um cavalo fantasmagórico espiando através das cortinas — imagens que cativaram a imaginação do público do final do século XVIII. A gravura continha versos poéticos que realçavam sua atmosfera sinistra:
Esta gravura foi amplamente distribuída e se tornou um best-seller, consolidando a reputação de Fuseli e Burke. Atualmente, ela faz parte de várias coleções importantes, incluindo o Museu RISD, o Museu de Belas Artes de Boston e a Tate Britain. A gravura de Burke, "O Pesadelo", continua sendo um exemplo significativo da gravura do século XVIII, refletindo o fascínio da época pelo sobrenatural e o poder da arte visual de evocar emoções.
Essa versão de Abildgaard reflete seu interesse por temas sombrios e psicológicos, alinhando-se à estética do romantismo e ao simbolismo emergente na virada do século XIX. Abildgaard, um dos principais nomes do neoclassicismo dinamarquês, era conhecido por sua habilidade técnica e por incorporar elementos dramáticos e simbólicos em suas obras. Sua interpretação de "The Nightmare" demonstra sua capacidade de adaptar influências estrangeiras ao contexto artístico dinamarquês, mantendo sua assinatura estilística.
A pintura também circulou amplamente como uma gravura reprodutiva, sendo a mais famosa a de Thomas Burke, em 1783. Enquanto estudava arte nas academias de Praga, Viena e Munique, entre 1855 e 1867, Gabriel von Max provavelmente conheceu a obra de Füssli e fez esta cópia de "O Pesadelo".
Apesar de ser uma cópia (ou uma interpretação direta) posterior, ela mantém os elementos principais da cena original de Füssli: A mulher desmaiada, languidamente estendida sobre a cama; O íncubo agachado sobre seu peito; O cavalo com olhos esbugalhados surgindo entre as cortinas ao fundo.
Essas reproduções eram relativamente comuns no período, dada a fama da obra original e seu impacto cultural e simbólico — especialmente em debates sobre sonhos, histeria e o inconsciente na virada do século XVIII para o XIX.
A cena, ao mesmo tempo simbólica e inquietante — é culturalmente carregada. Ela mostra uma mulher adormecida em um demônio sobreposto, e remete diretamente à tradição ocidental dos pesadelos associados a seres sobrenaturais, como íncubos e súcubos, e à iconografia popularizada por obras como O Pesadelo, de Füssli.
Essa representação visualiza um momento de violação sobrenatural, mas também carrega implicações teológicas e mitológicas. A imagem vem do Histoire de Merlin, parte do ciclo arturiano. Aqui, Merlin é apresentado como fruto da união entre uma mortal e um demônio. Isso o torna um “filho do diabo” — um híbrido com poderes mágicos. A narrativa carrega forte ambiguidade moral e espiritual. Segundo as crenças da Idade Média, íncubos (demônios masculinos) abusavam sexualmente de mulheres durante o sono, causando tanto prazer quanto tormento, gravidez e, às vezes, possessão. Esta imagem ilustra esse mito literal e visualmente.
A iluminura The Conception of Merlin antecipa em séculos o imaginário que artistas românticos iriam explorar. Todos esses exemplos tratam do cruzamento entre medo, desejo, espiritualidade e mitologia. Eles revelam como culturas diferentes buscaram visualizar o invisível: os traumas, as pulsões inconscientes e as forças que escapam à razão.
Essa ilustração inspirada no balé-pantomima Riccardo Cuor di Leone (Ricardo Coração de Leão) de Salvatore Viganò — amplia ainda mais a genealogia visual dos “pesadelos femininos” como gênero artístico e mito transcultural. Essa cena integra e dramatiza elementos teatrais, oníricos e demoníacos com forte carga simbólica.
Na imagem, vemos a Condessa Marguerite dormindo em um leito branco, envolta por seres demoníacos. É um momento não literal da trama — um sonho alegórico ou visão, típico da tradição da pantomima dramática, onde as emoções internas dos personagens ganham expressão visual e simbólica no palco. Essa cena é uma interpolação coreográfica que dramatiza o conflito interno de Marguerite diante da missão arriscada de salvar Ricardo. É um pesadelo que espelha suas ansiedades, medos e talvez tentações.
A cama branca alude à pureza e à virgindade. O contraste com os demônios evoca a ameaça à integridade moral. A camisola translúcida: suavemente erótica, articula uma tensão entre o corpo feminino e o olhar masculino. Os demônios têm feições animalescas, satânicas, com expressões libidinosas. Um deles empunha uma espada — símbolo fálico e bélico. Outro oferece fogo — conhecimento ou destruição? As cortinas esvoaçantes: evocam o palco teatral e o véu entre sonho e realidade.
A obra Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Observando), de Paul Gauguin, pintada em 1892 durante sua primeira estadia no Taiti, é um ícone poderoso e ambíguo que concentra tensões profundas entre erotismo, exotismo, medo, morte, e colonialismo. O título, em língua taitiana, já propõe uma ambiguidade: pode significar tanto “o espírito dos mortos está observando” quanto “ela está pensando no espírito dos mortos”.
Gauguin, em seus escritos, afirmou que Tehura teve medo de espíritos dos mortos (os tupapau) ao encontrá-lo ausente em casa. O quadro encena essa experiência, colocando a jovem entre o medo espiritual e o olhar voyeurístico do espectador ocidental — um duplo aprisionamento: cultural e simbólico. A pintura pode ser lida como uma encenação de fetichização colonial: o homem europeu (Gauguin) coloca a mulher nativa como objeto de contemplação exótica, sexualizada e espiritualmente “primitiva”. O próprio medo dela, culturalmente genuíno, é convertido em espetáculo.
A posição da menina, o corpo nu e imóvel, iluminado por baixo, confere à cena uma sensualidade inquietante. No entanto, a presença do espírito — talvez sua própria avó, talvez a Morte — gera uma tensão incômoda entre erotismo e assombro. O corpo colonizado, juvenil, feminino, é aqui objeto de desejo, mas também de angústia e morte.
Gauguin se dizia em busca de uma “pureza primitiva” longe da Europa industrializada. No entanto, ele recorreu a elementos visuais europeus (o nu feminino, a cama, o contraste luz/sombra) para representar um mito local, criando uma fusão híbrida e desigual entre culturas — o Taiti como fantasia, como teatro visual.
Segundo a tradição mitológica, Antíope era uma princesa mortal, de beleza radiante, que foi seduzida (ou violentada, dependendo da versão) por Júpiter, o rei dos deuses, que tomou a forma de um sátiro — figura híbrida entre homem e bode, associada ao desejo descontrolado e à natureza bestial. A cena ocorre invariavelmente durante o sono de Antíope, revelando um ponto de vulnerabilidade máxima da mulher: a entrega inconsciente, o corpo exposto e inerte, à mercê do olhar e do toque alheio.
A história de Júpiter e Antíope é uma das passagens mais carregadas de tensão erótica e simbólica da mitologia greco-romana. Revisitada por artistas ao longo dos séculos, essa narrativa atravessa escolas e estilos, mas preserva um núcleo comum: a exposição do corpo feminino adormecido — belo, indefeso e desejado — diante do olhar do deus disfarçado de sátiro. Ao longo da história da arte, esse mito foi reinterpretado por nomes como Anthony van Dyck, Jean-Auguste-Dominique Ingres, Carle Vanloo e Jean-Antoine Watteau, cujas versões destacam, cada uma a seu modo, aspectos específicos da mitologia, do erotismo e do poder.
Anthony van Dyck enfatiza o drama barroco da cena: contrastes de luz, o volume do corpo de Antíope em repouso, e a tensão física do sátiro prestes a tocá-la. A atmosfera é carregada de sensualidade e expectativa.
Ingres, no estilo neoclássico, investe na elegância das formas e na serenidade do momento, porém sem suavizar a tensão subjacente. Aqui, a pureza da linha contrasta com o tema sombrio da violação velada.
Carle Vanloo, no Rococó francês, adota uma abordagem mais decorativa e voluptuosa. O erotismo é mais explícito, mas tratado com um véu de leveza, próprio do gosto cortesão do século XVIII.
Jean-Antoine Watteau, por sua vez, em Nymphe et satyre, desloca a narrativa mitológica para um campo mais ambíguo entre o sonho pastoril e o desejo carnal. O olhar do sátiro é inquisitivo e inquietante, e a ninfa parece pairar entre a consciência e o abandono.
Esta iluminura otomana retrata um homem adormecido sendo atacado por Kabus, um jinn identificado como "pesadelo". A criatura, com corpo híbrido e acompanhada por dois assistentes com chifres, desce sobre o homem com intenções malévolas. A cena, extraída do manuscrito Maṭāli˓ al-sa˓āda wa manābi˓ al-siyāda, ilustra a crença islâmica nos jinns como seres invisíveis capazes de influenciar o mundo humano, especialmente durante o sono. A presença de talismãs dourados na imagem sugere práticas protetivas contra essas entidades.
A imagem mostra um homem adormecido sendo atacado por uma criatura sobrenatural — o Yamachichi, um yokai que, segundo o folclore japonês, suga a força vital das pessoas durante o sono, muitas vezes levando-as à morte. A criatura se inclina diretamente sobre o rosto da vítima, evocando um momento de imobilidade e vulnerabilidade, muito associado ao kanashibari. Ao lado da vítima, outro homem observa em choque — um detalhe raro, pois muitas imagens do gênero retratam o ataque sem testemunhas.
O roubo de energia vital é uma crença comum a diversas culturas, aqui representada pelo gesto de "soprar" ou "sugar" a alma pela boca. Análogo ao súcubo/incubo da tradição europeia ou ao jinn do Islã, o Yamachichi representa uma entidade maligna que age durante o sono — momento em que o espírito humano é mais acessível. A figura do Yamachichi se alinha diretamente à simbologia da perda de controle, da exposição e do terror inconsciente.
Este afresco pompeiano do século I d.C. retrata uma cena mitológica profundamente simbólica: o momento em que Dionísio encontra Ariadne adormecida na ilha de Naxos, após ter sido abandonada por Teseu. Dionísio, jovem e coroado de hera, aproxima-se com reverência, portando o tirso — seu bastão cerimonial — enquanto contempla Ariadne deitada, envolta em um véu leve, num gesto de abandono e vulnerabilidade. Ao seu lado, encontra-se Hipnos, o deus do sono, identificado como o pequeno ser alado que vela seu descanso, conferindo à cena um caráter de encantamento divino.
A presença de Eros, representado como uma criança alada, contribui para a atmosfera ritualística, indicando o destino amoroso que se aproxima. Outras figuras ao fundo, talvez ménades ou acompanhantes de Dionísio, reforçam o aspecto cerimonial do encontro. A composição visual expressa não apenas o momento da descoberta, mas uma transformação simbólica: a passagem do abandono humano à elevação divina. Dionísio não apenas desperta Ariadne, mas a torna sua esposa imortal, selando o encontro com uma promessa de eternidade — tema refletido em versões do mito em que ele a coroa com uma constelação.
O afresco não é apenas uma ilustração mitológica, mas também uma alegoria do renascimento amoroso, da substituição da dor pelo êxtase, do sono pela revelação. A figura de Hipnos, como mediador do limiar entre sonho e realidade, marca esse momento em que o tempo suspenso do abandono é substituído pela eternidade do amor divinizado.
No primeiro plano, Sob o entardecer tênue, Sleep (Sono) personificado surge como um jovem, de cutis pálida, apoiado sobre um leito. Seu corpo exibe uma musculatura suave e relaxada, a cabeça levemente inclinada, expressando tranquilidade. Ao seu lado, Death (Morte) — seu “meio-irmão” — é representado como uma figura mais rígida, de pele escura e feições graves — um nos entrega ao refúgio temporário do sonho, o outro ao silêncio eterno.
O duelo entre claridade e sombra, marca tão cara aos pré-rafaelitas, é aqui refinado: a luz suave realça os contornos do corpo adormecido, enquanto na sobra, Death quase oculto, sugere o peso da ausência. Um discreto abraço entrelaça os dois irmãos — pode ser tanto um símbolo de passagem (o limiar entre vida e morte) quanto um elo de consanguinidade inexorável. Ao pintar Death em posição de comunhão silenciosa com Sleep, o artista sugere que não há antagonismo: a morte não é inimiga do descanso, mas seu desfecho definitivo.
A tela captura o instante em que o deus grego do sono paira sobre o leito de uma mulher e seu filho adormecidos. Atrás deles, quase emergindo das sombras, ergue-se Hipnos: jovem alado, musculoso, erguendo-se do escuro com o rosto inclinado, quase beijando a testa da mulher. À direita, através de um vão na parede, espreita-se um crescente lunar pairando num céu noturno, lembrando a natureza onírica do momento.
Hipnos na sua origem e genealogia mitológica, era Filho de Nix (Noite) e irmão gêmeo de Tânatos (Morte), Hipnos personifica o sono reparador. Em Hesíodo (Teogonia 211–224), ele e Tânatos habitam uma caverna cheia de papoulas e adormecem os mortais e deuses, respectivamente. Os atributos iconográficos, sempre retratado com asas (às vezes nos ombros, às vezes na cabeça), simbolizando a leveza do sono e sua chegada súbita. Em muitas representações, ele carrega ramos de papoula ou trombetas que entoam o sopro do esquecimento.
No início do século XIX, a arte oficial francesa recuperava a mitologia greco‑romana para exaltar virtudes imperiais: o renascimento (Aurora), a beleza idealizada (Cefalo) e o domínio sobre as paixões (a atitude controlada dos deuses). Ao mesmo tempo, a redescoberta de sítios arqueológicos em Pompéia e Herculano alimentava o fascínio pelo mundo clássico. Guérin, ao escolher esse mito — em que a deusa do amanhecer rapta o mortal por amor —, dialoga com seu público culto, imbuído de leituras de Ovídio, Virgílio e dos neoclássicos ingleses.
Na tradição clássica, Eos (Aurora, para os romanos) apaixona‑se pelo belíssimo caçador Cefalo e, certa noite, arrebata-o ao sono com sopros de orvalho e sonhos dourados. Em várias versões, ela o rapta para o céu, concedendo‑lhe um amor eterno, mas também a condição de existir num limiar entre o dia e a noite. Guérin escolhe o instante inaugural desse encontro: o despertar crepuscular em que o humano e o divino se tocam brevemente.
A pintura é uma “passagem”: Aurora representa a vitória da luz sobre as trevas, e Cefalo encarna a vulnerabilidade humana diante do divino. O leito de nuvens simboliza esse espaço intermediário entre o palpável e o etéreo. Aurora não é apenas um astro‑pessoa, mas também amante ativa — ela colabora, quase maternalmente, para a transformação de Cefalo em imortal (segundo algumas versões, ele adquire poder de voar com as nuvens).
Após o sucesso de Aurora e Cefalo (1810), Guérin voltou-se em 1811 para mitos menos explorados, como o de Morfeu. Guérin já experimentava um romantismo nascente, visível na ênfase sobre o instante emocional: aqui, a troca de símbolos entre deusa e deus traduz a união dos opostos—o éter etéreo dos sonhos e o prisma luminoso da comunicação divina. Morfeu e Íris personificam dois “limiares”: um que separa o sono da vigília (Morfeu) e outro que une o céu e a terra através da ponte colorida do arco-íris (Íris). Juntos, eles comandam a experiência humana do visível e do invisível, fazendo da tela um espaço de transição.
Em Metamorfoses, de Ovídio, está a principal fonte sobre Morfeu e o envio de sonhos reais aos mortais. Já em Teócrito, Églogas e Statius, Silvae: referências ao ofício de Íris como “portadora de notícias” e à “passagem colorida” do arco-íris.
Guérin representa o encontro de Morfeu, o deus grego dos sonhos, com Íris, a deusa romana do arco-íris e mensageira dos deuses. Morfeu surge reclinado sobre nuvens sedosas, seu corpo jovem e musculoso banhado por uma luz suave que enfatiza os volumes. De seus ombros pendem delicadas asas — atributo que o associa não apenas ao sono, mas à travessia do mundo onírico. Íris aproxima-se, ligeira e altaneira, vestida com um quíton esvoaçante cujas pregas transparentes reverberam todo o espectro de cores do arco-íris. Num gesto de cumplicidade, ela estende a mão direita, oferecendo a Morfeu uma coroa de flores celestiais ou, segundo alguns críticos, um ramo perfumado que simboliza o despertar suave.
A cena esculpida na frente do sarcófago romano representa com delicado virtuosismo o mito de Selene e Endimião — uma das histórias mais poéticas do imaginário greco-romano. No centro da composição, vemos o jovem Endimião adormecido, recostado com o corpo relaxado, coberto por uma túnica e uma clâmide, segurando uma lança com uma das mãos, em um gesto que denota sua condição de caçador ou pastor. Ao redor dele, há animais domesticados, reforçando sua conexão com o mundo pastoral e bucólico.
Sobre Endimião, uma figura alada se inclina suavemente para tocar sua testa — é provavelmente Hipnos (o deus do sono), identificado por suas asas na cabeça, gesto e presença recorrente em representações do mito, pois teria sido ele o responsável por manter Endimião em sono eterno. Esse toque não é agressivo, mas reverente, como um selo sagrado que perpetua o encantamento do repouso imortal.
À esquerda, avança Selene, a deusa da lua, representada envolta em um quíton e um véu que forma uma auréola em torno de sua cabeça — sinal de sua natureza celeste. Ela segura uma tocha, símbolo da noite, sendo conduzida por um Cupido e acompanhada por figuras simbólicas que reforçam a atmosfera de fertilidade e sonho. Selene se aproxima de Endimião com um olhar contemplativo, marcada por uma atitude de desejo contido e ternura silenciosa.
Segundo o mito, Selene se apaixonou por Endimião ao vê-lo dormindo. Encantada por sua beleza, pediu a Zeus (ou, em algumas versões, ao próprio Hipnos) que o mantivesse em sono eterno, para que ele jamais envelhecesse e permanecesse assim eternamente belo — imóvel, intocado pelo tempo.
A cena gravada no mármore não é apenas uma ilustração mitológica, mas também uma alegoria da passagem do tempo, da beleza idealizada e do repouso eterno da morte — apropriada para um sarcófago. O sono de Endimião não é apenas físico, mas também simbólico: é a suspensão do tempo, da dor e da finitude, enquanto Selene se torna figura do eterno feminino, da luz que vigia o sono dos mortais.
Ao longo dos séculos seguintes, o mito de Selene (ou Diana, na tradição romana) e Endimião passou a ser retomado por diversos artistas, atravessando diferentes períodos históricos — do Maneirismo ao Neoclassicismo, do Rococó ao Romantismo e à arte acadêmica do século XIX — cada qual moldando a cena conforme seus valores estéticos e culturais predominantes.
Durante o Barroco italiano, pintores como Le Dominiquin (1609), Luca Giordano (c. 1675–80) e Francesco Solimena (1705–1710) reinterpretaram o encontro entre a deusa e o jovem adormecido através de composições dramáticas, teatralidade luminosa e cenários repletos de movimento. A cena torna-se um espetáculo sensorial, onde a ênfase recai no contraste entre o corpo lânguido de Endimião — muitas vezes nu ou semidespido — e a presença imponente, quase etérea, de Diana, envolta em luz ou conduzida por seres alados. Aqui, o sono já não é apenas repouso metafísico, mas um convite ao devaneio sensual e ao desejo reprimido, adequado ao gosto do período por narrativas com apelo emocional e alegorias complexas.
No Rococó francês, a abordagem torna-se mais leve, encantatória e até galante, como em Fragonard (c. 1753–56) e Lagrenée (c. 1776). O mito ganha contornos de fábula pastoril, um tema ideal para os salões aristocráticos do século XVIII. Diana já não é apenas uma deidade distante, mas uma mulher suspensa entre a divindade e o afeto humano, e Endimião é idealizado como um jovem amante inconsciente do olhar divino que sobre ele recai. A atmosfera se torna mais intimista e decorativa, privilegiando a graça, a beleza e o erotismo discreto — qualidades tão caras à sensibilidade rococó.
Com a chegada do Neoclassicismo, artistas como Girodet (1791) e Pécheux (1762) restituem à narrativa um tom elevado e moralizante. A história mitológica é resgatada com o rigor formal da Antiguidade, transformando-se em alegoria filosófica sobre o ideal, o sublime e o tempo. O célebre Endymion – Efeito Lua de Girodet é exemplo maior: o corpo de Endimião, banhado pela luz lunar, transforma-se em emblema da beleza ideal e da juventude eterna, enquanto todo o conjunto é marcado por um lirismo melancólico que antecipa o romantismo. Aqui, o sono eterno de Endimião adquire profundidade existencial, quase metafísica, sendo menos uma narrativa de amor divino do que uma meditação sobre o tempo, o desejo e a imortalidade estética.
Nos séculos XIX e XX, com a ascensão da estética romântica e pré-rafaelita, a narrativa volta a ser revisitada, mas agora com tons simbólicos e espirituais ainda mais acentuados. Em obras como a de George Frederic Watts (1872) ou Edward John Poynter (1902), Endimião torna-se uma figura interiorizada, quase andrógina, envolta por uma aura de introspecção e transcendência. Diana/Selene aparece menos como personagem ativa do mito e mais como projeção de um desejo inatingível, representando o ideal inalcançável, o divino feminino, ou mesmo o próprio inconsciente.
De maneira geral, o mito de Selene e Endimião, em sua longa fortuna iconográfica, oscilou entre três principais significações:
Allegoria da eternidade e da suspensão do tempo, ligada a ideais funerários ou contemplativos (especialmente nos contextos antigos e neoclássicos);
Narrativa de amor impossível ou desejo unilateral, muito comum no barroco e rococó, onde o corpo adormecido é objeto de contemplação e desejo;
Símbolo filosófico do ideal inacessível, frequentemente retomado no romantismo e nas vertentes espiritualistas do século XIX, em que o sono se torna metáfora da introspecção e da separação entre mundo sensível e mundo ideal.
Ao percorrer essa galeria de interpretações, fica claro que o mito de Selene e Endimião nunca se esgota em sua literalidade narrativa. Ele permanece um modelo plástico e conceitual de como o amor, o tempo, o desejo e a beleza ideal podem ser representados e ressignificados em distintos regimes de sensibilidade — da antiguidade à modernidade.
Argos, adormecido, é retratado como uma figura corpulenta, despida, em repouso vulnerável, seus olhos fechados — ironicamente, o momento em que o vigilante por excelência é vencido pelo sono induzido. A paleta quente, os contrastes de luz e sombra, e a movimentação dinâmica das figuras inserem o espectador no clímax da narrativa. O deus Mercúrio (Hermes, na mitologia grega), musculoso e elegante, é representado com seu capacete alado e caduceu, e conduz a cena com a calma estratégica de um executor divino. Mercúrio, aparece em movimento contido, prestes a realizar um ato decisivo: o assassinato de Argos Panoptes, o gigante de cem olhos encarregado de vigiar a ninfa Ío.
A pintura Mercúrio e Argos de Peter Paul Rubens apresenta um momento dramático da mitologia greco-romana, capturado com o vigor expressivo característico do Barroco flamengo. Ao fundo, um céu nebuloso e paisagem escura reforçam o clima de tensão e mistério, enquanto Ío, transformada em novilha por Júpiter, aparece ao longe, acorrentada ou sendo vigiada, sugerindo sua condição de prisioneira e o motivo do conflito.
A série abordava temas mitológicos inspirados nas Metamorfoses de Ovídio, que forneciam um repositório de narrativas clássicas repletas de drama, erotismo e transformação — temas amplamente explorados no Barroco. Rubens, além de pintor, era diplomata e intelectual refinado, e conhecia profundamente a literatura clássica e as convenções iconográficas. Ele transita entre o erudito e o sensual, valorizando o corpo humano em movimento, a exuberância carnal e o uso teatral da luz, como se a pintura fosse uma cena suspensa do teatro mitológico.
A obra Judite e Holofernes, atribuída à oficina de Jacopo Tintoretto por volta de 1577, oferece uma interpretação singular do episódio bíblico, destacando-se por representar o momento anterior à decapitação, com Holofernes ainda adormecido. Esta abordagem contrasta com outras representações que enfatizam o ato violento em si, proporcionando uma reflexão mais profunda sobre a vulnerabilidade e a tensão latente antes da ação.
Judite, armada e decidida, personifica a justiça divina e a resistência contra a opressão, enquanto Holofernes, inconsciente de seu destino iminente, simboliza a arrogância e a fragilidade do poder tirânico. A cena captura a tensão psicológica e a coragem necessária para o ato que está por vir, enfatizando a astúcia e a determinação de Judite. Essa narrativa compartilha a ideia de que o repouso pode ser um prelúdio para eventos decisivos, onde o inconsciente e o consciente se entrelaçam de maneira simbólica e poderosa.
O Livro de Judite é um texto deuterocanônico do Antigo Testamento, reconhecido pela tradição católica e ortodoxa, mas considerado apócrifo por muitas denominações protestantes. Composto por 16 capítulos, o livro narra a história de Judite, uma viúva judia que, com coragem e astúcia, salva seu povo da opressão estrangeira. Embora ambientado em um cenário histórico, muitos estudiosos consideram o Livro de Judite uma obra de ficção teológica ou um midrash, destinada a transmitir ensinamentos sobre fé, coragem e resistência.
A pintura Jael e Sísera, realizada por Artemisia Gentileschi por volta de 1620, retrata com intensidade dramática um episódio do Antigo Testamento (Juízes 4:17–22): o assassinato do general cananeu Sísera pelas mãos de Jael, uma mulher queneia(segundo a tradição bíblica, descendentes de Cain). O momento capturado por Artemisia não é o instante posterior ou anterior ao ato, mas o ápice da ação — o exato momento em que Jael crava uma estaca na cabeça de Sísera, que repousa vulnerável e adormecido.
Jael surge vigorosa, enérgica, com o braço estendido, martelo em punho, numa posição corporal que exige força e decisão. O gesto é deliberado, e a composição da cena é tensa, com os corpos formando uma diagonal que dirige o olhar do espectador diretamente ao ponto de impacto. Sísera, ainda em um estado entre o sono e a morte, aparece sem defesa, o rosto parcialmente virado, as mãos inertes. A paleta é densa, dominada por tons terrosos, vermelhos e ocres, com forte contraste de claro-escuro típico do tenebrismo de Caravaggio, grande influência de Artemisia.
Jael é tradicionalmente interpretada como uma heroína do povo de Israel, cuja ação inesperada e brutal foi vista como um instrumento divino de justiça. Artemisia subverte o papel da mulher passiva na história da arte, afirmando sua autonomia tanto como sujeito da ação quanto como agente moral. Jael e Sísera é mais do que uma representação bíblica; é uma afirmação estética e ética da força feminina. Artemisia Gentileschi transforma um episódio marginal do Antigo Testamento em um manifesto visual sobre poder, resistência e justiça. Essa pintura, portanto, não é apenas uma obra-prima barroca, mas também um testemunho atemporal da complexidade e potência do olhar feminino na arte ocidental.
A personagem Penélope, esposa de Ulisses (ou Odisseu), na Odisseia de Homero, não está "dormindo" de forma central no episódio retratado na pintura de Angelica Kauffman (Penelope and Euriclea), mas sim recolhida ao repouso — um símbolo de sua longa espera, vigilância emocional e angústia silenciosa. A cena mostra o momento em que Euriclea, sua serva fiel, vem acordá-la ou anunciá-la do retorno do marido após vinte anos de ausência. O repouso de Penélope é quase arquetípico: o “sono” é um momento breve dentro do enredo, mas simboliza um tempo muito mais longo, nos quais ela resiste, espera e mantém sua casa e sua fidelidade.
O fundo apresenta uma estátua de Minerva, deusa da sabedoria, reforçando a atmosfera de reverência e esperança. Kauffman utiliza essa narrativa para explorar temas como a força feminina, a paciência e a virtude, alinhando-se aos valores iluministas e neoclássicos de sua época. A artista suíça, foi uma das poucas mulheres a alcançar destaque no cenário artístico do século XVIII. Membro fundadora da Royal Academy em Londres, Kauffman desafiou as normas de gênero ao se destacar na pintura histórica, um gênero predominantemente masculino.
A obra El sueño de la razón produce monstruos é uma das imagens mais emblemáticas de Francisco de Goya, consolidando-se como um símbolo crítico da tensão entre racionalidade e superstição, razão e instinto. Criada em um contexto marcado pelo declínio do Antigo Regime, o fortalecimento das ideias iluministas e o peso conservador da Inquisição espanhola, a gravura sintetiza com precisão a ambivalência e a inquietação do final do século XVIII.
Goya apresenta a figura de um homem adormecido — geralmente interpretado como um autorretrato — apoiado sobre uma escrivaninha, rodeado por criaturas noturnas: corujas, morcegos e felinos de olhar espectral. O cenário evoca uma atmosfera onírica e perturbadora, não apenas por seu conteúdo fantástico, mas pela tensão psicológica que emana do contraste entre o repouso do corpo e o caos circundante. Esses “monstros”, emergentes do sono da razão, representam os horrores que florescem quando a racionalidade adormece — ou seja, quando a crítica, a lucidez e o pensamento são suspensos ou reprimidos.
O título é um jogo ambíguo e fundamental à sua interpretação. "El sueño" pode significar tanto o "sono" quanto o "sonho" da razão — abrindo uma leitura dupla: ou a razão, ao dormir, permite que os monstros do irracional aflorem, ou a própria razão, em seu delírio utópico, pode gerar monstruosidades quando levada a extremos. Essa polissemia dialoga com os ideais do Iluminismo, que Goya tanto admirava quanto questionava — especialmente frente às limitações políticas e sociais da Espanha de seu tempo.
Publicado em 1799 na série Los Caprichos, composta por 80 estampas, El sueño de la razón produce monstruos ocupa a posição central (lâmina 43), funcionando como uma espécie de ponte entre os primeiros caprichos de tom mais satírico-social e os subsequentes, de feição mais sombria e surreal. A obra, assim, demarca uma virada no tom da série: da crítica mundana à exposição dos horrores internos e coletivos, e é por isso frequentemente considerada um manifesto visual de Goya.
Culturalmente, a gravura reflete uma Espanha em crise de identidade, dividida entre o peso da tradição e os impulsos de modernidade. Conceitualmente, a obra antecipa os dilemas do Romantismo, com sua valorização do subconsciente, do irracional e do simbólico. Ao mesmo tempo, ela prefigura discussões modernas sobre a psique humana, sendo retomada por surrealistas e por pensadores como Michel Foucault e Walter Benjamin em análises da razão como constructo ambíguo.
Portanto, El sueño de la razón produce monstruos transcende sua função de crítica moral e política, revelando-se um exercício profundo de autoconsciência cultural, onde a arte serve como espelho e denúncia das forças que atuam tanto no indivíduo quanto na sociedade. É um marco do imaginário moderno e permanece, até hoje, uma das mais inquietantes expressões da tensão entre lucidez e delírio, razão e caos.
TransCultura
EM BUSCA DE UM PAPEL NA HISTÓRIA
Alexandre Mury faz mostra individual com autorretratos inspirados em obras clássicas
FABIANO MOREIRA
segundocaderno@oglobo.com.br
Volta e meia, o artista Alexandre Mury é surpreendido com o pedido de algum veículo de imprensa para que envie uma foto “normal” para publicação. Autotransfigurado em personagens
icônicos de obras da história da arte em seus trabalhos, Mury tem poucas fotos “normais”, e ele mesmo muda sempre o próprio lay-out, de forma que costuma atender ao pedido com uma foto 3x4, aquela da carteira de identidade. Amanhã, às 16h, na Caixa Cultural, ele abre a sua primeira mostra institucional individual, “Fricções históricas”, com 42 autorretratos, em grandes formatos, nos quais interpreta o “Abaporu” de Tarsila do Amaral, o “Adão” de Michelangelo, a “Mona Lisa” de Leonardo Da Vinci e o “Lucífer” de Franz von Stuck, entre outros personagens reconhecíveis pelo público.
Tudo começou como uma brincadeira de internet, nos anos 1990, época do Fotolog, ainda longe da esfera do mundo da arte institucional, no qual hoje Mury tem obras em coleções importantes, como as de Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva. — Eu fazia essas brincadeiras para produzir conteúdo para o meu canal no Fotolog e ver o poder de
interatividade dessas imagens — conta ele. — Investi dinheiro em perucas para postar as fotos até que fui descoberto por um marchand, Afonso Costa. Tomei um susto quando ele disse que meus posts eram arte.
SEM PHOTOSHOP
Na exposição, que fica em cartaz até o dia 8 de setembro, o artista mostra também o primeiro vídeo que produziu sobre seu processo de transformação para a realização da “Monalisa” (O vídeo já está disponível em seu canal: vimeo.com/mury.)
— Foi o trabalho mais performático que já fiz, raspando o cabelo, a barba e até as sobrancelhas — conta. — Nunca tinha mexido tanto no corpo. Todo o resto é sempre maquiagem.
Quando Mury fala em maquiagem, nem sempre se refere a cosméticos. O rosto brilhante de sua “Medusa”, por exemplo, foi obtido com óleo de cozinha. A lágrima que cai em seu rosto em “Aranha chorando” é um bocado de mel. Tudo obtido por meio de um processo de experimentação que ele desenvolve em sua casa, em São Fidélis, interior do Rio.
— Sempre uso um espelho para ver como ficará a foto e dou os cliques com um disparador ou pelo timer. Às vezes, algum amigo aperta o botão, mas eu faço toda a produção — revela. — O “Abaporu”, por exemplo, levou três dias, entre a busca de um cacto e de um local onde o pôr do sol ficasse exatamente na posição que ocupa na obra original. Fazer tudo sozinho é importante porque ajuda a configurar uma estética, sem o perfeccionismo da fotografia publicitária. Também evito o Photoshop, para deixar os vestígios de que é feito à mão, as pistas do improviso.
Além do trabalho da “Monalisa”, o primeiro no qual transformou seu corpo, Mury expõe também “A criação de Adão”, seu primeiro nu frontal, todo sujo de barro, que levou a exposição a ter uma recomendação para maiores de 16 anos. Aliás, esta e outras imagens são proibidas pelo Facebook.
— A imagem faz um diálogo com a obra original e remete à ideia de uma escultura com o meu próprio corpo. Não é uma cópia. Ela fala por si, ganha autonomia e conta sua própria história — reflete Mury, que tem sua obra comparada a samplers pelo psiquiatra Guilherme Gutman, que assina o texto do catálogo.