Detalhes / OBRA DE ARTE
Título: Um inglês em Moscou
Criador: Alexandre Mury
Data de criação: 2014
Tipo: fotografia
Meio: C-print (impressão cromogênica)
Período da Arte: Contemporâneo
Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Arte Performática
Assunto: autorretrato, releitura,
Obras Relacionadas: Англичанин в Москве (Inglês em Moscou), 1914, Kazimir Malevich
Artistas Relacionados: Kazimir Malevich
⚿ Palavras-chave
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A obra de Alexandre Mury que reencena e reconfigura Um Inglês em Moscou (1914) de Kazimir Malevich opera num território híbrido: é simultaneamente pintura reativada, montagem de objetos, cenografia, performance e fotografia. Esse entrelaçamento de meios não é mera estratégia formal; é uma proposição teórica sobre como o sentido se forma, falha e se reconfigura quando o corpo — e não apenas a tinta — assume a posição do signo. Em vez de vestígio documental, a imagem de Mury constrói um dispositivo (dispositif) que problematiza a diferença entre representação e presença, entre o símbolo e o seu uso social.
Materialidade e montagem
A primeira impressão é tátil: plásticos amassados, fitas adesivas sobrepostas, cola escorrida, grampos, rebarbas de papel, cortes irregulares — tudo exposto, deliberadamente "inacabado". Essa estética do remendo revela a operação de bricolagem e desloca a obra para a economia do objeto quotidiano. Objetos populares (ímã "Gentileza gera gentileza", logo-souvenir I ♥ NY, oratório, brinquedos: Pinóquio, espada, chocalho) convivem com utensílios reais (serrote, tesoura, anzol, vela). A vela — chama viva no centro da composição — funciona como nó semiótico: age como índice de presença, ponto energético que ilumina e simultaneamente consome; é a vida que insiste no campo das coisas. A tensão entre o que é signo e o que é objeto factualmente presente constitui a matéria primeira da obra.
Línguas inventadas: KARAWANE e AOPKHES
A operação mais radical de Mury talvez resida na escolha de substituir as palavras que Malevich empregou na obra original por dois termos inventados que pertencem a momentos históricos e regimes poéticos distintos: KARAWANE e AOPKHES. Ambas são línguas fictícias, nonsense constitutivos — mas carregam densidades históricas precisas.
KARAWANE remete ao poema sonoro de Hugo Ball (1916), expoente do movimento Dada no Cabaret Voltaire, onde palavras sem sentido funcionam como mantra hipnótico, ritual de dissolução da linguagem burguesa. AOPKHES, por sua vez, aparece como inscrição enigmática recorrente nas obras de Jean-Michel Basquiat, funcionando como assinatura cifrada, marca territorial, grafite que resiste à decodificação. Entre Ball e Basquiat há um abismo: o primeiro opera na ruptura vanguardista europeia do início do século XX; o segundo na insurgência neoexpressionista e afro-diaspórica da Nova York dos anos 1980.
Mury não hierarquiza essas referências. Ao justapô-las sobre acetatos transparentes e fitas adesivas, ele as trata como equivalentes — signos órfãos, desprovidos de contexto legitimador, mas imantados por sua própria opacidade. Essa constelação alógica cria uma temporalidade não linear, um anacronismo produtivo: os dois termos são pontos distantes de uma mesma carta estelar, unidos não por causalidade histórica, mas por uma gramática da invenção. Ambos recusam o sentido fixo; ambos convocam o olhar a uma experiência de estranhamento. A palavra aqui não comunica — perfura.
Cartografia do absurdo: territórios em trânsito
Se KARAWANE e AOPKHES articulam uma topologia temporal, a obra também articula uma geografia impossível. I ♥ NY evoca a mercadoria turística por excelência, o slogan publicitário que se tornou emblema de uma cidade-mundo. "Gentileza Gera Gentileza" remete ao Rio de Janeiro e à grafitagem de um profeta urbano nas ruínas da rodoviária, mensagem de resistência poética em contexto de exclusão. Pinóquio é símbolo da Itália, personagem da literatura infantil europeia que migra para o imaginário global. O blazer vem de um brechó londrino. E tudo isso gravita em torno de Moscou, cidade-título da obra original de Malevich, epicentro da vanguarda russa.
Mury monta, assim, um atlas fragmentado, uma babel visual onde convivem Nova York, Rio, Londres, Itália e Moscou — não como crônicas de viagem, mas como topologias do deslocamento. Esses territórios não são lugares físicos; são sedimentos culturais, marcas de circulação de signos, mercadorias e memórias. A obra se torna, assim, um espaço de diáspora simbólica, onde cada elemento carrega consigo um vestígio de origem e, simultaneamente, a perda dessa origem. O que une esses lugares tão distintos é a lógica do souvenir, do fetiche, do dejeto — tudo aquilo que sobra quando a experiência se transforma em mercadoria e quando a mercadoria se transforma em ruína.
Oratório e Pinóquio: o santo da mentira
Ao dispor um oratório com Pinóquio no lugar de um santo, Mury remete explicitamente à iconografia ortodoxa que Malevich conheceu — mas o efeito é irônico e subversivo. O oratório, estrutura devocional por excelência, torna-se altar de um culto profano: o culto da ficção, da fabulação, da falsidade. Essa substituição não é arbitrária. Pinóquio é o padroeiro apócrifo da mentira, o santo que mente porque ainda não é humano — e que se torna humano precisamente ao mentir. Ao colocá-lo no centro litúrgico da composição, Mury propõe uma teologia invertida: o sagrado não está na verdade revelada, mas na capacidade de invenção. Se o oratório é o lugar do testemunho e da fé, aqui ele se torna o lugar da dúvida e da fabulação. É uma interrogação ontológica: o que torna um boneco santo e um santo boneco? Essa operação dialoga diretamente com a tradição da profanação tal como formulada por Giorgio Agamben: restituir ao uso comum aquilo que foi separado na esfera do sagrado. Mury desloca o sagrado e faz coabitar com o brinquedo e o lixo cultural. A dimensão espiritual não desaparece — mas passa a operar como vestígio — como citação esvaziada." o que acha dessa versão mais descomprometida com uma ótica negativa da atitude do artista e mais potente como ato criativo
Texto como matéria plástica
Mury trata a palavra como Malevich e os poetas do zaum trataram: não como mensagem unívoca, mas como elemento pictórico. KARAWANE aparece em gelatinosas letras-brinquedo sobre acetato transparente; AOPKHES é montado com fitas sobre celofane — ambas as inscrições enfatizam a superfície, a translucidez e a sobreposição, resignificando a tipografia como volume e camada. A presença dessas palavras inventadas acrescenta uma dimensão de palimpsesto: a obra não narra, mas acumula; não explica, mas sobrepõe.
O texto não esclarece; provoca leitura lateral — convida a ouvir o grafema como som, a vê-lo como forma. Essa operação é coerente com a lógica geral da obra: nada aqui funciona de modo unívoco. Tudo é ambivalente, saturado de sentidos possíveis e mutuamente contraditórios.
Performatividade, autoria e ponto de vista
O artista está no quadro e fora dele ao mesmo tempo: segura a vela, o rosto aparece pela metade, o olhar direto confronta o espectador. Mury é ator, cenógrafo e fotógrafo — uma tríade que complica a noção de testemunho. A fotografia deixa de ser documento para tornar-se ato: a captura é parte da performance. O deslocamento da posição do autor — produtor e personagem — problematiza autoria e autenticidade, expondo a arte como operação teatral e ritual.
A iluminação multicolor (verde e vermelho incidindo sobre o rosto) acrescenta uma coreografia cromática que fragmenta a pele em manchas, como se a carne mesma fosse superfície pictórica. Esse uso da luz não é naturalista; é expressionista, teatral, quase místico. O rosto se torna máscara; a máscara, signo. O olhar que encara o espectador é simultaneamente desafiador e opaco — é um olhar que olha de volta, mas não responde.
Referências e genealogias: entre Malevich, Cornell e Rauschenberg
As afinidades com Malevich são honestas e pensadas: a alogia, o uso da palavra como corpo visual, a iconografia — tudo está presente como horizonte conceitual. Mas a obra de Mury não é mera réplica; dialoga também com a poética de Joseph Cornell (caixas-cenográficas que contêm narrativas veladas, objetos fetichizados que narram por ausência) e com o gesto assemblage de Robert Rauschenberg (incorporação do ready-made e do lixo cultural como material artístico, fusão de pintura e escultura no espaço do combine).
Diferentemente de Malevich, que tende ao gesto ascético do supremo quadrado, Mury prefere a proliferação: camadas, ruídos, restos. Essa opulência material converge com uma estética de resistência à limpeza modernista e à pureza formal. Se Malevich buscava o grau zero da representação, Mury busca o excesso — mas um excesso que não é decorativo; é crítico. Cada objeto acumulado funciona como objeção ao vazio, como recusa da síntese, como insistência no múltiplo.
A obra também dialoga com o que Rosalind Krauss identificou como campo expandido da escultura: a fotografia aqui não é registro, mas escultura; a performance não é efêmera, mas permanece congelada como tableau vivant; a colagem não é bidimensional, mas tridimensional e habitável. Mury opera no limite entre os meios, fazendo da fotografia uma "quase não-fotografia" — nem documentação de instalação, nem registro de performance, mas algo que implode essas categorias.
Erudito e popular, detritos e monumentos
A convivência entre o erudito e o popular é uma das tensões centrais da obra. Malevich, Ball, Basquiat, Cornell, Rauschenberg — todos convivem com souvenirs turísticos, brinquedos, imãs de geladeira, objetos de brechó. Essa convivência não é harmoniosa; é produtivamente conflituosa. Mury recusa a distinção hierárquica entre alta e baixa cultura, mas também não celebra ingenuamente o popular. O que interessa é o resto, o dejeto, aquilo que sobra quando a cultura se transforma em mercadoria e quando a mercadoria se transforma em lixo.
Os objetos pendurados com arames rústicos, os plásticos amassados e sujos, as fitas adesivas descolando — tudo isso não é acidente; é método. A precariedade é parte do discurso. Mury expõe o como da montagem, recusando a ilusão do acabamento. A obra se apresenta como trabalho, como processo, como construção visível. Isso dialoga com a tradição brechtiana do distanciamento: o espectador não deve esquecer que está diante de uma construção, de uma ficção, de um teatro.
Leitura crítica e ambivalências
A força do trabalho está em sua capacidade de tensionar: conjuga erudição e cultura popular, ritornelo litúrgico e piada subversiva, montagem e carne viva. Essa ambivalência é também seu risco. Em alguns momentos a profusão de signos corre o perigo de saturar o olhar, tornando o enigma demasiado denso ao ponto de fechar possibilidades de leitura. A visível precariedade da montagem — grampos, fitas descolando, plásticos sujos — pode ser lida tanto como estratégia crítica (expor o processo) quanto como superfície que dispersa a articulação semântica.
No entanto, longe de serem defeitos, essas aparentes imperfeições são escolhas de linguagem que convocam o público a um modo de fruição ativo: ver devagar, remendar sentidos, aceitar a incompletude. A obra não se entrega; exige trabalho. E esse trabalho não é apenas intelectual; é sensorial, afetivo, temporal.
Conclusão: sabotagem e reconfiguração do sentido
Um Inglês em Moscou de Alexandre Mury é uma operação curatorial sobre si mesma: monta, desmonta e volta a compor o acervo de signos que herdamos — artísticos, religiosos, turísticos, íntimos. Ao transformar a fotografia numa "quase não-fotografia", Mury abre um campo onde o objeto se faz sintoma e o signo se faz corpo. A obra nos diz que a contemporaneidade não é só um tabuleiro de signos prontos para leitura, mas um campo de trabalho onde os significados são continuamente forjados, sabotados e relidos.
Mury não apenas reaviva Malevich; atualiza a questão central da vanguarda: como pensar o sagrado — ou o que permanece sagrado — numa era saturada de mercadorias, memórias e dispositivos? A resposta está naquela vela, que arde, insiste e interroga. A chama é o único elemento que não pode ser falsificado, que não pode ser citado, que não pode ser deslocado sem deixar de ser o que é. E, no entanto, até ela — até o fogo — está em cena, performando sua própria presença. O que resta é a pergunta: o que, afinal, é verdadeiro nesta montagem de mentiras? E se a verdade estiver precisamente na capacidade de montar, desmontar e remontar o mundo?
Kazimir Malevich e Um Inglês em Moscou (1914): entre a alogia e o nascimento do Suprematismo
Pintada em 1914, Um Inglês em Moscou marca o ápice do período “alogístico” de Kazimir Malevich — fase imediatamente anterior à formulação do Suprematismo. Nessa obra, Malevich suspende a lógica da representação e investe em uma construção visual fragmentada, onde palavra, forma e cor se tornam equivalentes em valor expressivo. A tela funciona como um campo de colisão entre linguagens — pictórica, tipográfica, simbólica — em que o sentido se dissolve para dar lugar a uma experiência perceptiva direta, próxima ao conceito futurista russo de zaum (transracional).
A figura enigmática do “inglês” no título não designa um sujeito específico, mas opera como metáfora da alteridade: o olhar estrangeiro, racional e urbano que observa — e é observado por — Moscou, centro de um país em ebulição entre tradição e modernidade. O título, portanto, já propõe uma tensão: a justaposição Oriente/Ocidente, campo/cidade, irracionalidade criadora e lógica civilizada. Esse embate se reflete na superfície pictórica, onde objetos cotidianos — uma escada, uma colher vermelha, uma lâmina curva, um peixe branco — se dispersam num espaço sem perspectiva, flutuando em planos fragmentado de cores e signos.
Formalmente, Malevich se apropria de recursos cubistas — planos sobrepostos, múltiplos pontos de vista — e da energia dinâmica do futurismo, mas lhes confere um desvio semântico. O artista não busca decompor o real, e sim desarticular o próprio sentido de representação. As inscrições em russo — частичное затмение (“eclipse parcial”) e скаковое общество (“sociedade de corridas”) — não são legíveis como mensagens; funcionam como corpos gráficos, equivalentes aos volumes e às cores. Assim, a palavra é tratada como matéria visual, libertando-se da função de comunicar para adquirir potência plástica, ecoando o gesto dos poetas zaum, como Krutchônikh e Khlebnikov, de romper com a sintaxe e a racionalidade.
A organização dos elementos na tela se dá por contrastes simbólicos: o peixe branco, identificado por alguns intérpretes como um arenque, cobre o olho do personagem e alude à cegueira espiritual do cristianismo institucionalizado; diante dele, o sabre reluz, signo do poder estatal e militar. A tensão entre lâmina e peixe materializa o conflito entre Igreja e Estado, tema recorrente no imaginário de Malevich. A escada — que ascende em direção incerta — sugere, por sua vez, a transição da arte para uma nova etapa evolutiva, um caminho que levaria ao “mundo não-objetivo” do Suprematismo. A colher vermelha carrega ainda uma dimensão performática e política. Em 1914, Malevich e o poeta Vladimir Maiakóvski usaram colheres de pau presas na lapela, como gesto provocativo durante uma ação futurista em Moscou.
A composição de Um Inglês em Moscou recorre à estrutura do ícone religioso — centralidade, frontalidade, ausência de profundidade —, mas subverte sua função devocional. Malevich, profundamente influenciado pela iconografia ortodoxa, transforma o ícone em campo de experimentação formal. A espiritualidade que emerge de sua pintura não se liga mais a um dogma, mas à ideia de uma energia pictórica autônoma, capaz de produzir sentido fora da narrativa. Essa espiritualidade sem religião — um misticismo pictórico — está na base de sua teoria posterior, expressa em textos como Do Cubismo e Futurismo ao Suprematismo: o novo realismo pictórico (1915) e O Mundo como Não-Objeto (1927).
A obra, portanto, deve ser entendida como um laboratório conceitual. Nela, Malevich desmonta o mundo visível e o sentido discursivo, instaurando o que ele próprio chamou de “alogia”: uma lógica outra, em que a contradição e o absurdo substituem a coerência representacional. O “inglês” não é um retrato, mas um signo entre signos — um fragmento dentro do eclipse parcial da modernidade. Moscou, por sua vez, não é cenário, mas um estado de caos criativo.
Assim, Um Inglês em Moscou é mais do que um testemunho da vanguarda russa: é a metáfora de uma passagem. Entre o ruído urbano e o silêncio do ícone, entre o objeto e o não-objeto, entre o inglês e Moscou, Malevich ensaia o salto que levará à pura supremacia da forma. A obra anuncia a dissolução do mundo figurativo em favor de uma nova ontologia da pintura — aquela em que o artista, liberto da razão e da narrativa, encontra o absoluto no vazio branco do futuro.
No início do século XX, Kandinsky mergulha em um universo de correntes esotéricas, principalmente a teosofia de Helena Blavatsky e os estudos sobre energia psíquica, vibrações e fenômenos como auras, pensamento-fórma e fotografias espirituais. Kandinsky não apenas pintava cores; ele acreditava que a cor era um corpo energético. Seus escritos em Do Espiritual na Arte (1911) deixam claro: a pintura não representa a realidade — ela manifesta forças invisíveis.
A mulher da composição é um ponto de ancoragem: figura entre o terrestre e o espectral. Ao redor dela, cores nebulosas funcionam como uma aura pictórica, um campo vibratório — claramente em diálogo com os estudos teosóficos sobre as “formas do pensamento”, onde emoções humanas se manifestariam como nuvens cromáticas. A grande mancha negra, frequentemente ignorada em leituras superficiais, é o elemento mais radical da obra. Ela se impõe de modo abrupto, como se ocultasse algo. E por que está ali?
Kandinsky convive com a fotografia não de forma passiva, mas íntima. Gabriele Münter, sua companheira, era fotógrafa. No círculo do Blaue Reiter circulavam imagens com riscos, queimaduras, recortes — "erros" fotográficos. A mancha negra possui essa função: interfere na imagem como o negativo que queima a emulsão. Portanto, a mancha não é decorativa. Ela introduz o fim, o desconhecido. É o momento em que a imagem deixa de ser figura e ameaça dissolver-se em pura abstração.
Influenciado por fotografias de sessões espíritas, pelos registros de thought-forms, Kandinsky compreende que o invisível não pode ser representado — apenas insinuado. A mancha torna-se um portal: o ponto onde a pintura toca o indizível. A mancha negra, longe de ser um acidente, é o golpe que encerra a narrativa e inaugura a pintura como frequência psíquica. Ali, Kandinsky começa a abandonar o mundo. Em dois anos, chegará ao ponto sem retorno: a abstração.
Malevich não cita a Gioconda por homenagem, mas por saturação do ícone. Ele escolhe a imagem mais carregada da história da pintura — a figura-símbolo do Renascimento, da genialidade e do olhar humano — para ofuscá-la com geometrias abstratas. Esse gesto (hoje perdido fisicamente, mas documentado) é um ato de dessacralização. Ao colar um cigarro na boca da Mona Lisa, Malevich profanava a imagem mais sacralizada da tradição ocidental. Não é apenas uma piada; é uma ação conceitual avant la lettre — quase uma antecipação do ready-made duchampiano, ou do humor de Magritte.
Ao sobrepor planos geométricos à Gioconda, Malevich propõe uma nova hierarquia visual: as formas abstratas não são mais “decoração” nem “composição”, mas entidades com peso espiritual próprio. Segundo o próprio Malevich, um cigarro foi colado nos lábios da Gioconda, que se perdeu com o tempo. Esse detalhe icônico, é claro, também determinou a atitude irônica do artista em relação à obra-prima. A Gioconda torna-se um fragmento entre outros — um signo histórico dentro de um campo de forças visuais. Esses retângulos (antepassados do Quadrado Negro e do Quadrado Branco sobre Fundo Branco) encarnam o nascimento do espaço suprematista, o mundo onde o objeto desaparece e só resta a energia pura da forma.
A inscrição “Eclipse Parcial” funciona em dois planos simultâneos: como fato real — em 1914, houve mesmo um eclipse solar observado na Rússia, o que ancora a obra no tempo histórico; como metáfora espiritual — é o eclipse da razão renascentista e do humanismo representacional. Malevich ironiza a própria grandiloquência do gesto: o “compromisso cômico” de que fala o texto está em usar a linguagem do desastre cósmico (o eclipse) para falar de uma mudança artística.
No centro, fragmentos pintados de uma natureza-morta (pedaço de pão, copo, faca, jornal) aparecem parcialmente cobertos pela palavra “JOU” — abreviação ambígua de journal (jornal) e jouer (jogar). Picasso introduz texto pictórico — o “JOU” pintado no jornal — como fragmento de linguagem. Jogando com o duplo sentido, a palavra pode funcionar como imagem, e que o signo escrito é um corpo visual.
O “texto pictórico” marca uma ruptura com a tradição mimética. Até então, palavras em uma pintura serviam a um conteúdo narrativo ou simbólico (um letreiro, um nome, uma citação religiosa). Aqui, elas são autônomas, um signo flutuante. Picasso, ao pintar o “JOU”, faz da palavra uma imagem — antecipando práticas da arte conceitual, da pop art e até da poesia visual.
Além do recorte de jornal, a borda é feita de uma corda real, colada, simulando uma moldura artesanal. O detalhe trançado que parece ser “palha” é, na verdade, um fragmento de papel impresso, um retalho colado sobre a superfície da obra. Picasso faz isso com um senso teatral e provocativo — ele quer que o espectador perceba o choque entre o real e o representado.
É a primeira colagem cubista, e uma revolução silenciosa: Picasso introduz na pintura a textura do mundo real, o banal, o cotidiano, o industrial, e confunde o espaço da arte com o da vida. Picasso transforma o quadro em um objeto-ironias, uma “natureza-morta” que inclui o próprio artifício da moldura e da decoração.
Braque estava em Sorgues, no sul da França, em setembro de 1912, quando viu em uma loja um rolo de papel de parede estampado que imitava veios de madeira (faux bois). Ele comprou o papel, recortou pedaços e colou-os em um desenho a carvão. O ato de colar esse papel impresso industrialmente (mass-produced) na obra de arte foi um passo mais radical do que a colagem de Picasso em "Natureza-morta com Cadeira de Palha" (que usava um tecido/linóleo estampado).
Esse gesto simples — colar um objeto industrial dentro de uma obra de arte — rompeu várias fronteiras: Misturou o real e o representado: o papel de parede imita madeira; ao colá-lo, Braque não precisa mais “pintar” o efeito da madeira — ele o introduz literalmente na obra. Quebrou a hierarquia entre arte e objeto comum: algo produzido em massa, barato, entra no espaço da arte. Questionou o valor da mão do artista: parte da obra não é “feita” por Braque, mas “escolhida” por ele.
Foi uma virada da arte moderna em direção ao conceitualismo, à apropriação e à autonomia dos signos visuais — abrindo caminho para Duchamp, o ready-made e, mais tarde, para toda a arte do século XX.
Harnett foi um mestre do gênero Trompe-l'œil (em francês, "engana o olho"). A técnica que visa criar uma ilusão ótica perfeita, fazendo com que o espectador acredite que os objetos pintados são tridimensionais e reais. A pintura não é sobre o objeto, mas sobre a materialidade do objeto.
Uma "Falsa" Colagem — a composição é deliberadamente construída para parecer uma tábua de recados ou uma porta de armário onde objetos foram pendurados e fixados. O espectador é levado a pensar que os objetos (o violino, o cachimbo, a ferradura) foram colocados na tela. Esta justaposição de objetos díspares, simulando sua montagem física, é o que a conecta ao conceito de colagem.
Quando Braque e Picasso introduzem o papier collé (papel colado), eles estão, ironicamente, fazendo o inverso de Harnett: em vez de usar a pintura para enganar o olho com objetos falsos, eles usam objetos reais para confrontar o espectador com a realidade e romper a ilusão. O sucesso extremo de Harnett na criação da ilusão ajudou a pavimentar o caminho para a destruição da ilusão que viria com a abstração e a colagem no século XX.
“Vaca e Violino” é, desde o título, um absurdo deliberado. Não há relação lógica, anatômica ou narrativa entre os dois elementos — o animal e o instrumento musical. O título funciona como um dadaísmo antecipado, um ataque ao realismo linguístico: o nome não explica a imagem, ele a desestabiliza. Malevich propõe um novo tipo de relação entre palavra e forma: o pensamento não parte do “mundo”, mas da associação mental livre, da colisão de signos heterogêneos.
Visualmente, a obra articula planos quebrados, intersecções abruptas, sobreposições de volumes e cores primárias — ainda sob o vocabulário cubofuturista. Mas ao contrário dos cubistas franceses, Malevich não está interessado em mostrar “vários pontos de vista de um mesmo objeto”. Ele cria uma montagem de ideias visuais: fragmentos de vaca, fragmentos de violino, pedaços de letras, planos que sugerem dinamismo e ruído. É o momento em que a pintura deixa de representar o mundo exterior e passa a pensar o próprio processo de ver.
Há uma ironia em jogar com o natural (a vaca, símbolo do rural, do orgânico) e o artificial (o violino, símbolo da cultura e da música refinada). O encontro dos dois produz um curto-circuito cultural: o campesino encontra o erudito — e ambos se dissolvem num campo pictórico de pura energia.
Em “O Aviador”, Malevich converte a linguagem em pintura e a pintura em linguagem. Fragmentos de palavras russa, restos de frases e trocadilhos se tornam signos de uma fala perdida — não para comunicar, mas para vibrar. É o nascimento da pintura transracional, em que o quadro já não fala de coisas, mas pensa como o próprio espírito.
Enquanto o Cubismo Sintético de Picasso e Braque incorporava recortes de jornal e letras para brincar com a fronteira entre o real e o pictórico, Malevich ultrapassa essa fronteira. Ele não cola o texto como citação, mas o dissolve na pintura. As letras tornam-se elementos pictóricos autônomos, com o mesmo estatuto dos planos de cor e das formas geométricas.
“O Aviador” é o último retrato de um corpo antes da abstração absoluta. Em Vaca e Violino, o mundo objetivo ainda resiste; em Composição com Gioconda, ele é eclipsado; aqui, o corpo humano já está em desintegração cósmica. É o limiar do que virá: o espaço sem horizonte, sem figura, sem peso — o universo suprematista.
A composição é construída a partir de planos de cores e formas geométricas que se interpenetram, sugerindo a arquitetura de uma estação ou vagão de trem e a paisagem que passa rapidamente. Malevich abandona a perspectiva tradicional em favor de uma justaposição de diferentes pontos de vista, quebrando o espaço em pedaços e forçando o espectador a montar o sentido.
É na inclusão do texto que a obra revela seu caráter mais inovador. "Kuntsevo" é o nome real de uma localidade nos arredores de Moscou, ancorando o paradoxo em uma geografia concreta. O título funciona como o seu "ponto de interrogação" conceitual. Uma "Estação" pressupõe um lugar de parada e troca; "Sem Paradas" nega essa função, subvertendo o significado utilitário do local.
Malevich insere fragmentos de palavras e letras em diferentes ângulos e tamanhos na composição visual. Estas inscrições são geralmente ilegíveis ou descontextualizadas, mas são inegavelmente presentes. Elas não servem para narrar a cena, mas funcionam como objetos plásticos, da mesma importância que um retângulo de cor ou uma linha. Elas elevam a tipografia ao status de forma artística pura. Ao libertar a palavra do seu significado e a imagem da sua função descritiva, Malevich pavimenta o caminho para a eliminação total do objeto e da narrativa, que culminaria no seu Suprematismo (como o Quadrado Preto de 1915).
Na tradição dos ícones ortodoxos, o texto é um elemento dogmático e estrutural. Sua presença não é decorativa, mas funcional e teológica. As letras vistas acima da figura de Maria e do Menino Jesus não são “MP” e “OY” no nosso alfabeto latino, mas abreviações sagradas em grego, que identificam e autentificam a imagem representada.
As letras gregas Μ (Mu) e Ρ (Rô) são uma abreviação da palavra Μήτηρ (Mētēr), que significa “Mãe”. Já as letras Θ (Theta) e Υ (Ípsilon) abreviam Θεοῦ (Theou), que significa “de Deus”. Assim, a inscrição completa ΜΡ ΘΥ — tradicionalmente escrita com um traço horizontal acima de cada grupo de letras para indicar a abreviação — forma a expressão Μήτηρ Θεοῦ, isto é, “Mãe de Deus” (em grego: Theotokos).
De modo análogo, nos ícones de Cristo Pantocrator, a auréola cruciforme que circunda a cabeça de Jesus traz as letras gregas Ὁ ὬΝ (Ho ōn), que significam “Aquele que é” — uma referência direta ao nome divino revelado a Moisés no Êxodo (3:14). As letras IC XC, por sua vez, são abreviações de Ἰησοῦς Χριστός (Iēsous Christos) — “Jesus Cristo” — usando as primeiras e últimas letras de cada palavra, conforme o costume bizantino.
Kazimir Malevich, profundamente marcado pela cultura visual russa e pela herança dos ícones, subverteu o papel do texto na pintura. Em obras como “Um Inglês em Moscou” (An Englishman in Moscow, 1914), o artista transporta o uso da palavra do contexto sagrado para o campo da arte não objetiva e da revolução formal.
Em Um Inglês em Moscou, é possível ler fragmentos como ЗА (ZA — “por” ou “em favor de”), e, logo abaixo, partes da expressão затменiе (zatmenie — “eclipse”), grafada na ortografia russa anterior à reforma de 1918, com o antigo “і” (i decimal): тменiе. Em outro ponto, aparecem fragmentos dispersos das sílabas “час” + “тич” + “ное”, que, reunidas, formam частичное (chastichnoe — “parcial”). Juntas, essas palavras compõem a expressão частичное затменiе, ou “eclipse parcial”.
Malevich também insere discretamente a inscrição “скаковое общество” (skakovoe obshchestvo — “sociedade de corridas” ou “clube de hipismo”), termo alusivo tanto à elite moderna quanto à ideia de movimento e velocidade, temas recorrentes no Futurismo russo.
Enquanto no ícone bizantino o texto confirma a identidade sagrada da imagem, em Malevich o texto rompe a estabilidade do sentido: suas palavras, fragmentadas e deslocadas, flutuam no espaço pictórico como signos sem centro fixo. O alfabeto que um dia serviu à liturgia passa a servir à ruptura da representação.
Malevich observou que Rublev e os iconógrafos russos não estavam apenas pintando; eles estavam codificando verdades transcendentais por meio de uma disciplina geométrica e de cor rigorosa. "A Trindade" de Rublev é uma construção geométrica minuciosa que codifica a doutrina cristã. A composição é sustentada por formas puras e invisíveis: o círculo (união e eternidade divina), o triângulo equilátero (igualdade e unidade da Trindade), a cruz (eixo do sacrifício e amor divino) e o retângulo (a terra, o mundo material).
Malevich removeu o elemento teológico e figurativo (os anjos, Cristo, o Templo), mas manteve a intenção fundamental: usar formas puras (Círculo, Quadrado, Cruz) e cores absolutas para criar um objeto de arte que fosse, em si, um portal metafísico — um novo ícone para um mundo sem Deus, onde a sensibilidade é o supremo valor. A influência de Rublev em Malevich não é sobre estilo ou aparência, mas sobre função e estrutura.
Rublev usou formas puras para canalizar uma verdade religiosa específica (a Santíssima Trindade). Malevich usou formas ainda mais puras para canalizar uma experiência metafísica universal, desvinculada de qualquer dogma. Ele acreditava que, ao reduzir a pintura ao seu elemento mais básico (o quadrado), ele poderia dar acesso ao "vazio" ou ao "deserto" onde apenas a sensibilidade pura e a consciência do absoluto existem.
Em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, a Rússia mobilizou grande parte de sua população masculina para o serviço militar. Malevich, sendo um reservista, temia ser convocado. Essa ansiedade é refletida na obra, que aborda a tensão entre o indivíduo e a máquina de guerra.
"Soldier of the First Division" não é um retrato convencional; é uma interpretação emocional e simbólica da figura do soldado. Malevich utiliza formas geométricas e fragmentos de objetos para representar a figura humana de maneira abstrata. Este período representa uma fase de transição crucial para o artista Kazimir Malevich, que estava se movendo rapidamente em direção à abstração total.
A obra é composta por formas geométricas puras (retângulos e barras) flutuando em um fundo branco infinito. Não há profundidade ilusória nem perspectiva tradicional. O fundo branco representa o vazio, o quarto plano, o espaço além da matéria, onde a forma e a sensação são soberanas. Malevich era fascinado por tecnologia e principalmente pelo avião. Ele estudou fotografia aérea e queria que White on White criasse uma sensação de flutuação e transcendência.
Ao incluir o termo "Airplane Flying" (Avião Voando), Malevich deixa um último elo com o mundo material. O avião era um símbolo da tecnologia moderna, da ruptura com o solo e da nova era que os futuristas e suprematistas tanto celebravam. O título funciona como um portal, indicando que a inspiração para a composição ainda estava ligada a um fenômeno do mundo real (o voo, a máquina), que foi traduzido para o novo vocabulário da forma pura. Essa ambiguidade seria, eventualmente, abandonada nas obras suprematistas mais radicais e tardias de Malevich, onde os títulos se tornaram estritamente numéricos ou genéricos.
Nesta pintura, as faixas vermelhas diagonais atravessam e parcialmente cobrem a faixa preta horizontal. A sensação é a de que Malevich empilha planos, como se cada cor fosse um retalho de papel recortado. A sobreposição cria profundidade sem perspectiva; movimento interno (o vermelho parece avançar, o preto recuar) e uma tensão entre ocultamento e revelação — o núcleo simbólico do eclipse.
Em termos simbólicos, é quase como se a energia (vermelho) eclipsasse a matéria (preto) — ou, em outro nível, a nova consciência suprematista eclipsasse o velho mundo materialista. No vocabulário plástico de Malevich, especialmente no ciclo Suprematista, a ideia de “eclipse” como sobreposição, não é apenas como ocultamento simbólico, mas como um modo estrutural de construção pictórica.
O eclipse em Malevich não é apenas metáfora — é um princípio formal e filosófico: sobreposição de planos → eclipse visual; supressão da figura → eclipse do mundo visível; transcendência da forma → eclipse da matéria pela ideia. Ele mesmo escreve em Do Cubismo ao Suprematismo (1916): “O mundo do objeto é eclipsado pelo puro sentimento.”
A obra de Cornell transcende a simples colagem e o assemblage; suas caixas são pequenas cenografias. Ao invés de usar uma tela plana, ele constrói um microcosmo tridimensional dentro de uma caixa de madeira e vidro. Essa estrutura funciona como um palco em miniatura ou uma vitrine de Wunderkammer (gabinete de curiosidades), onde cada objeto e fragmento de papel (a cromolitografia recortada, a colagem de papel, a nota dobrada) é um ator meticulosamente posicionado em planos sobrepostos.
O título "A Parrot for Juan Gris" é uma declaração de intenções e uma chave de leitura. O tributo a Juan Gris (1887-1927) em vez de seus mais célebres contemporâneos cubistas, Picasso e Braque, é altamente significativo. O Cubismo de Gris, muitas vezes chamado de "Cubismo Cristalino" ou "Pós-Analítico", é caracterizado por uma estrutura arquitetônica rígida e um sistema de planos e cores mais definidos e claros do que as paletas monocromáticas e a fragmentação extrema de Picasso e Braque.
O impacto dessa obra é duplo: por um lado, ela preserva a delicadeza artesanal em meio à era industrial; por outro, antecipa o assemblage e a arte conceitual, sendo influência reconhecida em artistas como Rauschenberg e Johns.
Magritte revisita seus temas mais recorrentes — o mistério, o ocultamento e a ironia — condensando-os em uma imagem simples e inesquecível: um homem de terno e chapéu-coco cujo rosto é coberto por uma maçã verde suspensa. Essa obra dialoga com uma cultura que se tornava cada vez mais mediada por imagens e aparências. O rosto encoberto não é apenas um truque visual, mas um comentário sobre a impossibilidade de ver o essencial. O surrealismo de Magritte, aqui, se aproxima de uma crítica da representação: o objeto mais banal torna-se obstáculo entre o olhar e a identidade.
Seu impacto é imenso — não apenas no imaginário popular, mas na teoria da imagem. O Filho do Homem tornou-se um ícone da condição moderna: o sujeito oculto sob a superfície visível, eclipsado por sua própria imagem. A expressão "Filho do Homem" é um termo importante usado no Antigo Testamento para designar a humanidade em geral, ou seja, um ser humano.
A maçã, especialmente a maçã verde, é um símbolo poderoso na cultura ocidental, frequentemente associado ao Fruto Proibido do Jardim do Éden, que levou ao Pecado Original de Adão e Eva. A maçã se torna o obstáculo que impede o conhecimento total da identidade do homem — o que pode ser lido como o preço do conhecimento ou a incapacidade de ver a verdadeira essência humana após a "queda".
Na fotografia de Claudio Abate (1989), Kounellis aparece com um pequeno suporte de metal na boca servindo de apoio para uma vela acesa à frente de seu rosto. O artista é transformado em veículo, em suporte vivo — a obra e o corpo tornam-se indissociáveis. A relação entre os elementos é quase litúrgica: a vela é o elemento sacramental que liga o homem à ideia. O corpo do artista substitui o altar; o fogo torna-se confissão.
A fotografia lembra uma obra de Kounellis, realizada em 1969, que consiste num painel de ferro escuro — pesado, opaco, industrial — sobre o qual se inscreve, em giz branco, a frase “Libertà o Morte. W Marat W Robespierre”. Abaixo, uma vela acesa repousa num pequeno suporte metálico. Marat” e “Robespierre” aparecem como mártires da liberdade; a frase “Libertà o Morte” condensa o grito revolucionário em sua forma mais elementar, quase ritual. A chama é ao mesmo tempo iluminação e sacrifício: o fogo consome o pavio e ilumina o ferro, lembrando que toda liberdade verdadeira implica risco, consumo, finitude.