Detalhes / OBRA DE ARTE
Título: Esqueleto queimando um cigarro
Criador: Alexandre Mury
Data de criação: 2012
Tipo: fotografia
Meio: C-print (impressão cromogênica)
Período da Arte: Contemporâneo
Movimento/Estilo: Arte Conceitual, Arte Performática
Assunto: autorretrato, releitura, vanitas, memento mori, cigarro, caveira, esqueleto, pintura corporal, isqueiro zippo
Obras Relacionadas: Skull of a skeleton with burning cigarette, 1886, Vincent van Gogh
Artistas Relacionados: Vincent van Gogh
⚿ Palavras-chave
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A obra “Esqueleto queimando um cigarro” (2012) integra um ciclo autorreferencial na produção de Alexandre Mury, no qual o corpo do próprio artista é mobilizado como suporte, dispositivo e matéria significante. Trata-se de um autorretrato no qual o artista intervém diretamente sobre o próprio corpo por meio de pintura corporal, performando a imagem de um crânio humano que segura um cigarro aceso, posteriormente registrado fotograficamente. Este procedimento técnico transcende o exercício de estilo para configurar uma operação conceitual que tensiona categorias ontológicas fundamentais — particularmente as dicotomias entre vida e morte, presença e representação, organicidade e artificialidade. O trabalho convoca, sem nomeá-las diretamente, epistemologias como a biopolítica e a necropolítica.
A estratégia de autoinscrição pictórica fricciona os limites entre representação e performatividade, ativando uma genealogia de representações da morte no campo da história da arte. Contudo, essa operação não se limita a um exercício de citação visual. Ao colocar-se como objeto e sujeito da imagem, Mury insere seu corpo no circuito do visível como campo de problematização sobre identidade, finitude e mediação técnica. Ao pintar o próprio rosto como um crânio — onde o que se manifesta é, simultaneamente, vestígio, disfarce e simulacro —, Mury opera uma desconstrução do retrato enquanto tecnologia de subjetivação. Não se trata de uma máscara, mas de uma contra-pele: uma segunda epiderme que, em vez de proteger, expõe.
O recurso à ossatura facial simulada — por meio da pintura diretamente sobre a pele — não se resolve como simples alegoria da morte. Antes, produz um corpo ambíguo, que transita entre o orgânico e o espectral, entre o sujeito e o simulacro, entre a matéria viva e sua representação mortuária. A persistência da barba visível sob a pintura introduz uma fissura deliberada no efeito mimético, expondo o caráter construído da representação — opera como recusa à ilusão trompe-l'œil da caveira, instaurando no gesto pictórico uma fenda semântica que evidencia a própria artificialidade do dispositivo. Esta estratégia anti-ilusionista converte a pele em palimpsesto político: superfície onde se inscrevem mecanismos biopolíticos de controle corporal, conforme teorizados por Foucault, mas também campo de resistência à naturalização dos corpos como entidades autoevidentes. O trabalho atualiza, assim, a tradição das vanitas barrocas, deslocando-a de uma meditação sobre a fugacidade da vida para uma crítica aos regimes contemporâneos de gestão da existência.
O cigarro, elemento central na composição, cumpre aqui uma função semiótica decisiva. Ao contrário de representar exclusivamente um vício, um hábito ou uma metáfora de prazer e decadência — tópicos recorrentes na cultura visual do século XX —, ele se inscreve como marcador temporal. O cigarro aceso funciona como cronômetro da combustão, ativando a imagem como índice da própria finitude. Sua presença remete, simultaneamente, a práticas sociais, construções culturais em torno do corpo e, sobretudo, à ideia de desgaste: do corpo, do tempo, da própria representação. A fumaça, por sua vez, torna-se inscrição do tempo, vestígio efêmero congelado pelo dispositivo fotográfico — paradoxal testemunho de uma combustão que, simultaneamente, se nega e se perpetua.
O Zippo — objeto-fetiche da cultura material — não é mero detalhe: carrega consigo a iconografia do masculino, da cultura pop, da guerra (o isqueiro dos soldados na Segunda Guerra Mundial), do cinema noir, do consumo e da destruição. É um objeto que literalmente produz fogo — combustão, destruição, mas também luz, calor, energia. O Zippo aceso não ilumina — sentencia. A chama opera como cronômetro da finitude, metonímia da própria entropia do sujeito contemporâneo. A fotografia, longe de congelar o instante, fabrica um fóssil: uma ruína antecipada, uma cápsula de tempo na qual o corpo ainda não morreu, mas já não está vivo.
Formalmente, a imagem se estrutura sobre um fundo negro absoluto — estratégia recorrente na história do retrato fotográfico e da pintura — que aqui reforça o isolamento do corpo enquanto signo. Este apagamento do espaço circundante desloca a figura para uma condição quase atópica — um não-lugar simbólico —, amplificando a tensão entre presença e desaparecimento. Ao anular referências contextuais, isola a figura como signo autônomo, transfigurando-a em espectro flutuante que ecoa a condição dos corpos mediados na cultura digital — presentes como imagem, ausentes como carne. Este não-lugar, non-lieu (nos termos de Marc Augé), intensifica o jogo dialético entre visibilidade e apagamento, evidenciando como a obra espectraliza a própria noção de presença.
O olhar frontal do “esqueleto”, enquadrado no eixo tradicional do retrato de três quartos, subverte a dinâmica sujeito-objeto ao confrontar o espectador, expondo a reciprocidade constitutiva do ato de olhar. Este olhar frontal, que rompe a quarta parede da imagem, é central. Não se trata mais do olhar que fixa o outro, nem do olhar introspectivo do autorretrato clássico. Este olhar nos devolve como dados, como metadados, como resíduos de um regime escópico que já não nos constitui como sujeitos, mas como superfícies mineráveis de informação e desejo. O autorretrato, aqui, implode enquanto tecnologia de subjetivação burguesa, tradicionalmente destinada a fixar identidades e afirmar individualidades. O olhar frontal, paradoxalmente vivo, encara o espectador não como sujeito, mas como dado. Como arquivo. A caveira que fita é também um agente da vigilância — signo de um regime imagético onde o sujeito não se vê mais representado, mas monitorado, extraído, minerado. O rosto é, ao mesmo tempo, cadáver e avatar. Corpo e deepfake analógico. Restauro pictórico e glitch biológico.
A luz quente, amarela, faz vibrar os ocres e os marrons da tinta, criando um efeito pictórico que desafia o olhar a discernir: isto é pintura? Corpo? Fotografia? Como ato de autorrepresentação, o trabalho desloca radicalmente a função do autorretrato. Longe de afirmar uma subjetividade autoral, Mury desconstrói o eu através da máscara pictórica, alinhando-se à crítica pós-estruturalista do sujeito como instância descentrada. A obra converte-se, assim, em meta-dispositivo que interroga os processos de subjetivação mediados pela imagem na era da hiperexposição digital. Neste sentido, a fotografia não documenta uma performance, mas fabrica um artefato crítico que desnaturaliza os mecanismos de construção identitária, conforme teorizado por Vilém Flusser em sua filosofia da imagem técnica.
Se, por um lado, a obra aciona dispositivos históricos da vanitas e da tradição dos memento mori — estruturas iconográficas consolidadas desde o barroco —, por outro, inscreve-se no debate contemporâneo sobre as condições biopolíticas da imagem. O corpo aqui é convertido em superfície de inscrição, questionando não apenas a representação da morte, mas também as formas pelas quais os corpos são continuamente estetizados, expostos e espetacularizados na sociedade da hiperexposição digital. O trabalho não é uma imitação da morte — é a simulação da própria simulação. A pintura corporal não busca iludir o real, mas expor a fragilidade do próprio real, jogando com suas camadas de representação. Baudrillard (1981) torna-se quase inevitável aqui: trata-se de um simulacro de terceira ordem — não representa a morte, mas uma ideia de morte mediada por séculos de imagens da morte na história da arte. A morte, aqui, não é evento — é estética.
Do ponto de vista epistemológico, o trabalho pode ser interpretado como uma reflexão sobre os processos de subjetivação mediados pela imagem. A ativação do autorretrato não se configura como expressão de interioridade, mas como construção performativa e instável, onde o corpo do artista não afirma uma identidade, mas dramatiza sua própria desconstrução simbólica. A obra desloca a lógica do belo para a lógica do abjeto, do inquietante, daquilo que não se deixa domesticar pela estética normativa.
Diferentemente de uma operação meramente estética ou autobiográfica, o gesto de Mury articula-se como procedimento crítico, mobilizando referências à história da arte, à cultura visual contemporânea e às discussões sobre a performatividade do eu na era da imagem. O corpo-esqueleto, simultaneamente documento, ficção e dispositivo semiótico, tensiona as fronteiras entre o sujeito e sua representação, entre vida e morte, entre o que se vê e o que se simula. Esta não é uma obra que se encerra na habilidade técnica — seja no manejo da pintura corporal, seja na composição fotográfica —, seu maior impacto reside na sua condição de dispositivo crítico.
Assim, “Esqueleto queimando um cigarro” não se apresenta apenas como um comentário sobre a efemeridade da existência, mas como uma interrogação sobre os regimes de visibilidade que moldam, controlam e estetizam os corpos na contemporaneidade. A morte não é fim — é looping — e o corpo, reconfigurado como fóssil performático, torna-se monumento antecipado de sua própria obsolescência. A evocação das tradições da vanitas ou dos memento mori barrocos é aqui extrapolada como potência — o que se oferece é uma arqueologia crítica da própria condição ontológica do corpo na contemporaneidade.
A contribuição decisiva desta obra para os estudos visuais contemporâneos reside em sua articulação entre crítica materialista e arqueologia da mídia. Ao enfatizar a materialidade da tinta sobre a pele — em contraste com representações digitais imateriais —, Mury reafirma o corpo como locus de resistência política. Simultaneamente, o diálogo com histórias cruzadas de representação — da pintura corporal indígena às vanitas europeias, da fotografia analógica à CGI — expõe camadas sedimentadas de mediação técnica. Esta operação posiciona a obra na intersecção entre história da arte, biopolítica e filosofia da tecnologia, oferecendo um modelo analítico para compreender como os corpos são codificados, estetizados, espetacularizados e gerenciados nos regimes visuais do capitalismo tardio.
Realizada provavelmente durante o breve período em que Vincent van Gogh frequentou a academia de arte de Antuérpia, esta obra singular se inscreve como um comentário crítico, ambivalente e, em certa medida, irônico tanto sobre os protocolos acadêmicos quanto sobre a condição humana.
Sua interpretação admite, de maneira não excludente, múltiplas camadas de leitura:
Sátira dos Códigos Acadêmicos: Na tradição das academias de belas-artes, o estudo de esqueletos configurava-se como exercício fundamental no aprendizado anatômico. Entretanto, o gesto de inserir um cigarro aceso entre os dentes do crânio subverte a austeridade desse exercício, instaurando uma dimensão de humor corrosivo e de deboche. A pintura se torna, assim, uma forma de insubordinação estética — uma crítica velada à rigidez dos cânones acadêmicos e, por extensão, à ideia de que a arte devesse submeter-se a normas estritamente formais.
Memento Mori Contemporâneo: A tradição iconográfica do memento mori, cuja função é lembrar a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte, encontra aqui uma reatualização que incorpora elementos da modernidade. O cigarro — objeto efêmero, que se consome lentamente até reduzir-se a cinzas — opera como metáfora da própria existência humana: frágil, breve, fulgurante. Nesse sentido, Van Gogh articula uma reflexão mordaz sobre o hedonismo, o prazer fugaz e a finitude.
Autorretrato Alegórico: Considerando-se tanto o estado de saúde precário de Van Gogh quanto seu hábito compulsivo de fumar, a obra adquire contornos de um autorretrato simbólico, profundamente irônico e melancólico. Trata-se de uma encenação visual de sua própria vulnerabilidade, de seu corpo exaurido, de sua consciência aguda da deterioração física e psíquica.
Em síntese, o esqueleto fumante pode ser lido como uma alegoria de um hedonismo desesperado, uma espécie de carpe diem niilista: "Se tudo tende à morte, por que não gozar do instante?". Ao mesmo tempo, funciona como gesto de ruptura — uma declaração implícita de que a arte não precisa se submeter ao formalismo estéril e à autoridade do cânone acadêmico.
A posterior rejeição explícita de Van Gogh às práticas acadêmicas — documentada em sua vasta correspondência e em registros críticos — permite compreender esta obra como um prenúncio de sua futura dissidência estética e de sua radical busca por uma linguagem pictórica emancipada, profundamente subjetiva e existencial.
Desenho a lápis, reforçando o interesse de Van Gogh pela iconografia da morte e da anatomia.
Na tradição iconográfica europeia, o esqueleto é recorrente como alegoria da morte — presença constante nas danças macabras, nas vanitas, nos ciclos pictóricos do memento mori. Contudo, James Ensor, operando no seio das contradições do simbolismo tardio e da modernidade nascente, desloca esse signo para um território outro: não mais apenas a representação da finitude humana, mas a própria figura do artista transformada em esqueleto.
Aqui, o esqueleto não aparece como agente externo, como ceifador ou espectro. Ele é o próprio pintor. É Ensor transfigurado. Ao colocar-se sob a forma de um esqueleto, pintando — ele próprio produzindo imagens. A própria prática da arte é, paradoxalmente, uma tentativa de fixar o efêmero, de disputar, ainda que inutilmente, contra o desaparecimento.
Se Van Gogh acende um cigarro na boca do esqueleto, reafirmando o absurdo e a transitoriedade do gesto humano, Ensor, por sua vez, faz do próprio ato de pintar — e não do cigarro — a metáfora última desse embate: pintar como quem esculpe contra o nada. O gesto de enfrentar a morte, não como fim absoluto, mas como interlocutora inevitável do ato criativo. É a imagem do artista enquanto operário do efêmero, fabricante de fantasmas, artesão daquilo que não permanece.
A tradição iconográfica do memento mori, cuja função é lembrar a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte. Esta obra não apenas representa a efemeridade; ela encena a própria experiência do tempo que se esvai. Não há ornamento, não há excesso — apenas a brutalidade da matéria que se confronta com sua própria precariedade. O crânio — alegoria direta da finitude e da decomposição. O tinteiro e a pena — a escrita como tentativa humana de inscrever-se no tempo, de deixar marcas, legados, registros. O copo tombado — prazer esvaziado, consumado, interrompido. A lamparina se apagando — metáfora recorrente do fim da vida, da extinção da consciência.
O vidro tombado, o crânio com dentes separados e o pavio gotejante de uma lamparina a óleo servem como símbolos austeros da brevidade da vida. O espaço pictórico — uma simples pedra áspera, fronteiriça, que parece projetar os objetos para o espaço do espectador — elimina qualquer distração narrativa. A paleta reduzida, de ocres, marrons e cinzas, acentua essa atmosfera de suspensão temporal e de condensação simbólica.
Nesta obra, Vik Muniz mobiliza um gesto conceitual de rara acidez: acopla a uma caveira anatômica — em tudo fiel aos modelos científicos — um nariz de palhaço, aquele elemento mínimo e banal, mas capaz de condensar toda a gramática do riso, do escárnio e da caricatura.
O que se apresenta, de imediato, é um curto-circuito semântico: o símbolo universal da morte — a caveira — é atravessado pelo signo da comicidade, da bufonaria, do ridículo. O riso, que culturalmente se inscreve como antídoto ao trágico, aqui não exorciza a morte, mas a evidencia. A caveira permanece intacta na sua condição de ruína ontológica do sujeito; no entanto, é violentada pela dissonância de um apêndice risível.
A operação de Muniz convoca uma sofisticada reflexão sobre as máscaras culturais com que enfrentamos o inominável. O nariz de palhaço, frágil e cômico, funciona como uma prótese simbólica: aquilo que se adiciona para suportar a insustentabilidade da própria finitude. Há um desconforto latente, uma tensão irresolúvel entre o patético e o trágico.
Se, historicamente, as vanitas barrocas elegiam o crânio como memento da caducidade da vida e da futilidade dos prazeres terrenos, Caveira de Palhaço tensiona essa tradição, não pela via do sagrado, mas pela ironia contemporânea. Trata-se de um memento mori atravessado pela cultura do espetáculo, pela performatividade do humor e pela estetização do absurdo.
Escher, ainda jovem e em sua fase expressionista inicial, entrega um ensaio visual sobre a morte que opera não pela gravidade do sublime, mas pelo desconcerto da dissonância. A caveira, elemento canônico dos mementos mori desde a tradição barroca, surge aqui adornada com uma cartola — emblema da elegância, do prestígio burguês, do status social — e, entre os dentes, sustenta um cigarro aceso, cuja leve inclinação adiciona à cena uma camada de desdém, deboche ou insolência metafísica.
A construção visual do desenho é meticulosamente econômica, mas potente. O fundo sepia e a matéria do papel dialogam diretamente com a ossatura do crânio, cujas superfícies são moldadas por sombreados densos e linhas de giz que dramatizam a luz. A cartola, com sua curvatura quase caricatural, instaura um eixo vertical que contrasta com a diagonal do cigarro, traçando uma composição que, embora simples, mantém uma tensão visual precisa.
O cigarro, aqui, não é mero adereço: é operador semiótico. A combustão lenta do fumo evoca, de modo sutil, a própria combustão da vida. A brasa que queima é também metáfora do tempo que se consome. O gesto banal de fumar, performado por aquilo que já não respira, torna-se uma ironia radical. O morto — ou a própria morte — fuma. E o faz com elegância, protegido sob a couraça simbólica de um chapéu de gala.
Há um humor soturno, quase niilista, que atravessa a cena. Uma recusa tácita à solenidade que normalmente envolve as representações da finitude. A caveira não encara o espectador com ameaça, mas com uma espécie de indiferença elegante. Ela fuma. E isso basta.
Ao final, é impossível não reconhecer uma ressonância direta com Kop van een Skelet met Brandende Sigaret (1885-86) de Vincent van Gogh. Ambos colocam a caveira — esse ícone da mortalidade — para realizar um gesto absolutamente mundano: fumar. Mas enquanto Van Gogh encena um comentário possivelmente ácido sobre a vida, a morte, ou até sobre as próprias práticas acadêmicas da anatomia, Escher opera uma inflexão estética onde o humor e o absurdo ganham protagonismo. A cartola — ausente em Van Gogh — é mais do que um acessório: é uma ironia sobre os dispositivos culturais que tentam domesticar o horror da morte com protocolos de civilidade.
Nesta obra paradigmática do gênero denominado tronies — estudos expressivos de fisionomias —, Adriaen Brouwer, que presumivelmente se autorrepresenta no conjunto, retrata um grupo de homens reunidos em uma taverna, cujos rostos estão profundamente marcados pelos efeitos sensoriais do álcool e do tabaco.
Trata-se de uma representação despida de idealização, onde a crueza da experiência corpórea — o amargor do fumo, a vertigem etílica, a densidade da fumaça — é transposta para a superfície pictórica com aguda potência expressiva. A cena sugere uma reflexão moral subjacente sobre os excessos, os vícios e os desvios do comportamento humano, alinhando-se às práticas iconográficas do período, nas quais a representação dos prazeres sensoriais frequentemente se associa a advertências visuais sobre as fragilidades da condição humana, a transitoriedade do deleite e os riscos inerentes aos estados de descontrole.
O fascínio de Vincent van Gogh por Adriaen Brouwer não é casual, mas profundamente revelador. Van Gogh reconhecia no pintor flamengo a capacidade singular de acessar uma verdade sensível e existencial por meio da observação direta, desprovida de filtros idealizantes. A visceralidade cromática e a expressividade gestual presentes na obra de Brouwer ecoam, de maneira inequívoca, na construção da poética pictórica de Van Gogh — ambos comprometidos com a representação da vida em sua dimensão mais prosaica, áspera e, paradoxalmente, poética.
Discípulo e, possivelmente, colaborador próximo de Adriaen Brouwer, Jos van Craesbeeck realiza, nesta obra, um comentário visual que se constitui simultaneamente como homenagem, diálogo e paródia. Trata-se de um exercício de aguda metalinguagem pictórica, no qual o artista não apenas reverbera a estética do mestre, mas também a distorce, amplifica e tensiona — num gesto que revela as dinâmicas complexas de emulação, rivalidade e superação características do ambiente artístico flamengo do século XVII.
A configuração visual — centrada na figura isolada do fumante, cuja expressão caricatural roça os limites entre o grotesco e o cômico — inscreve-se também no gênero das alegorias dos cinco sentidos, prática iconográfica recorrente na pintura barroca. Nesse contexto, o ato de fumar adquire estatuto simbólico como representação do olfato, uma vez que o cheiro penetrante do tabaco e a materialidade efêmera da fumaça oferecem uma tradução sensível da experiência olfativa no campo da imagem.
O fumante, portanto, não é apenas um personagem genérico, mas uma construção alegórica que encarna uma faculdade perceptiva — simultaneamente um sujeito e um signo, um corpo e uma metáfora da própria condição sensorial humana.
No vocabulário pictórico de Georges de La Tour, o ato de fumar deixa de ser mero registro de costumes ou anedota de gênero. Em sua radical depuração formal, o gesto se desloca para o campo da meditação ontológica. O tabaco, frequentemente associado, nas tradições flamenga e holandesa, aos prazeres vulgares e aos desregramentos sensoriais, aqui se converte em signo do efêmero, vetor de uma reflexão silenciosa sobre a impermanência.
La Tour não busca comentar os vícios, nem ironizar os sujeitos. Ele instala uma suspensão do tempo, onde o instante do fumo é, paradoxalmente, o instante da eternidade que se percebe enquanto se desfaz. A fumaça não é metáfora moralista, mas índice fenomenológico da dissipação — do corpo, do desejo, da matéria.
A luz, longe de ser um mero recurso técnico, opera como princípio filosófico: revela não para narrar, mas para interrogar. O vazio que circunda a figura não é cenário, mas campo de forças, um espaço de pensamento onde a materialidade rarefeita da fumaça dialoga com a densidade da sombra.
O fumante, aqui, não é personagem. É condição. É figura de um existir que se reconhece na tensão entre presença e evanescência. La Tour não pinta o mundo visível: captura aquilo que nele resiste à visibilidade — o instante em que o ser se sabe transitório.
Este retrato encapsula, de maneira condensada e fulminante, a estetização do desencaixe moderno. Louis Pascal, médico e amigo íntimo de Lautrec, surge representado com uma languidez que beira o espectral: corpo curvado, olhar evasivo, e — sobretudo — um cigarro queimarrotas, cuja fumaça é quase uma extensão do próprio pensamento.
O cigarro aqui não é mero adereço: ele se converte em prótese psíquica, em gesto de suspensão, de pausa existencial. Na Paris de fin de siècle, fumar era mais do que hábito — era signo de pertencimento à boemia, ao dandismo, às margens elegantes da vida urbana. Mas há também uma dimensão mórbida, seu semblante recaído faz do cigarro não só um signo de estilo, mas uma metáfora da própria combustão vital — vida que queima, que se consome.
Pintado com pinceladas soltas, quase inacabadas, o fundo vazio acentua o isolamento da figura. O cigarro, tênue e fugidio, parece ser o fio que ancora o retratado ao mundo, uma metáfora da fragilidade moderna: existência suspensa entre a dissolução e o desejo de permanência.
Neste autorretrato, Munch se apresenta envolto em uma atmosfera densa, quase espectral, onde a fumaça do cigarro não é mero detalhe, mas elemento estruturante da cena. Ela não apenas circunda sua mão e seu rosto, como também parece infiltrar-se no próprio espaço pictórico, dissolvendo os contornos e instaurando uma espécie de nevoeiro psíquico.
O fundo é opaco, esfumaçado, em tons frios — azuis, cinzas, negros — que evocam não um lugar físico, mas um território mental: o espaço da ansiedade, da melancolia, do mal-estar moderno.
O cigarro não é aqui apenas um atributo, mas um dispositivo simbólico de primeira ordem. Ele condensa diversos registros: O gesto moderno e decadente, típico das estéticas fin-de-siècle; A marca da autodestruição, da combustão lenta do corpo e da psique; Um signo de autonomia e resistência, pois fumar também é um ato de afirmação do corpo, de domínio do próprio tempo, da própria morte.
Oito anos depois, Munch retorna ao mesmo enquadramento, à mesma frontalidade, mas transfigura radicalmente a cena. Agora sem camisa, seu corpo emerge nu, exposto, fragilizado, sobre um fundo incandescente — vermelhos, laranjas, ocres — que não deixam margem para ambiguidades: é o próprio inferno interior, ardente, psíquico, existencial.
Se em Autorretrato com Cigarro a fumaça fria dilui o corpo na ansiedade, aqui é o fogo que consome, que circunda, que ameaça obliterar. Não há mais cigarro — não há mais mediação. A combustão agora é direta, visceral. O corpo é ele mesmo brasa, cinza, labareda. Em Autorretrato no Inferno, a combustão simbólica atinge seu paroxismo. Já não há cigarro: há o corpo, diretamente exposto ao fogo da existência, da culpa, da pulsão de morte.
O Mecânico, de Fernand Léger, é uma síntese poderosa da iconografia da modernidade industrial. A figura de braços cruzados, é construída a partir de volumes cilíndricos, planos cromáticos contrastantes e linhas rigorosamente arquitetônicas — elementos que, mais do que ecoar o vocabulário cubista, já anunciam a inflexão do artista rumo ao que ele próprio denominará de “realismo mecânico”.
O cigarro, aqui, não é mero detalhe. Surge como signo ambivalente: humano e maquínico, orgânico e industrial. Se, por um lado, remete à persistência de hábitos triviais do corpo no mundo da máquina — um resquício da carne em meio ao aço —, por outro, funciona como vetor de modernidade, informalidade e até de virilidade operária. A combustão do cigarro é, paradoxalmente, o único elemento efêmero na composição, contrapondo-se à rigidez e perenidade das formas industriais que dominam a cena.
Esta representação do trabalhador — não mais um camponês, nem uma alegoria heroica, mas um arquétipo da engrenagem urbana moderna — dialoga diretamente com as transformações sociais e econômicas da Revolução Industrial tardia e do advento do fordismo. O mecânico de Léger é tanto sujeito quanto produto da máquina. Seu corpo não é mais biológico: é uma extensão das linhas de montagem, dos pistões e das engrenagens que moldam o mundo moderno.
Inserido nesse contexto, o cigarro adquire uma camada adicional de sentido: ele demarca uma pausa, um intervalo entre a produção e o corpo, entre a alienação e o prazer mínimo. É um sopro humano na engrenagem da modernidade. Mas, como toda combustão, carrega também o embrião de sua própria obsolescência e finitude — uma combustão lenta, tal como a vida nas cidades industriais.
A obra se inscreve, portanto, não apenas na história das vanguardas formais, mas também na genealogia da iconografia do cigarro na arte — agora transmutado de signo de vício ou prazer burguês para emblema da subjetividade proletária na era da máquina.
Sylvia von Harden — escritora, jornalista, crítica cultural — é retratada não como musa, nem como corpo objetificado, mas como sujeito pleno, irredutível, iconoclasta. O cigarro, delicadamente sustentado entre os dedos, ergue-se como um cetro moderno — um sinal de agência, independência e recusa dos papéis tradicionais atribuídos às mulheres no início do século XX.
O entorno é minimalista, mas carregado de sentido: o chão quadriculado, a mesa redonda, o copo de bebida, o jornal. Tudo converge para reforçar uma narrativa de modernidade urbana, intelectualizada, marginal e cosmopolita. No contexto da República de Weimar, o ato de uma mulher fumar em público era um gesto não apenas de afirmação pessoal, mas de ruptura com as convenções patriarcais. A Neue Frau — a "Nova Mulher" — emerge como um arquétipo que encarna liberdade sexual, autonomia econômica, circulação pública e desafio às normas de gênero.
O cigarro aqui não é mero acessório estético. Ele é prótese simbólica de um corpo que se reconstrói, que reivindica para si o direito de existir fora da domesticidade, fora da moral burguesa, fora da moldura masculina.
Dix, com seu realismo ácido e sua precisão expressionista, não suaviza nem idealiza. Ao contrário: acentua a angulosidade, o desconforto, a artificialidade da pose — como se dissesse que a própria modernidade é feita de ruídos, fissuras e tensões.
Aqui, o cigarro não é apenas adereço — é um operador simbólico fundamental na construção desse retrato que tensiona gênero, desejo, marginalidade e subjetividade.
O jovem, de roupão, bobes no cabelo, unhas feitas, segura um cigarro com uma naturalidade que subverte tanto as normas de gênero quanto os códigos de representação. O cigarro, neste contexto, é extensão do corpo e também mediação entre performance e identidade. A fumaça paira como signo de um entre-lugar: nem inteiramente masculino, nem inteiramente feminino, nem dentro, nem fora dos cânones sociais.
Arbus, que sempre se interessou por aqueles que vivem nas bordas do mundo normativo — travestis, anões, pessoas em situação de marginalidade —, aqui opera uma espécie de memento contemporâneo: não da morte biológica, mas da morte das certezas, das categorias estanques, dos papéis fixos.
O cigarro é índice da própria modernidade: combustão, consumo, efemeridade. Neste retrato, ele se torna uma vela que queima por um sujeito que arde em sua própria construção identitária.
A presença do cigarro tensiona o corpo, afirmando simultaneamente vulnerabilidade e insolência. Mapplethorpe não posa apenas como sujeito; ele se oferece como objeto de contemplação, escândalo e sedução. A combustão do cigarro reverbera como metáfora de um corpo que queima — no tempo, no desejo, na história.
Neste autorretrato, Mapplethorpe constrói sua imagem com uma economia radical de elementos: fundo neutro, corpo parcialmente fora de quadro, olhar direto, cigarro nos lábios. A fumaça discreta, mas sua iminência está condensada no gesto e na postura. O cigarro funciona aqui como extensão do desejo, da morte e da potência erótica — marcas recorrentes em sua poética.
O cigarro é elemento recorrente em seus autorretratos, associado à aura cool, à marginalidade, ao risco. Combustão, prazer, efemeridade e destruição se fundem no jogo entre erotismo, morte e estilo.
Sally Mann produz aqui uma imagem que desafia, perturba e fascina. Uma menina — sua filha Jessie — posa com um cigarro (falso, uma bala em forma de cigarro), mas a ambiguidade do gesto é cortante. A fotografia desestabiliza categorias convencionais: infância e adultização, inocência e perversão, brincadeira e transgressão.
O que se vê é um corpo infantil performando um gesto codificado como adulto, como desviante, como perigoso. A pose, o olhar lateral, o peso do quadril deslocado — tudo remete a um léxico visual associado a feminilidades hiper-construídas, teatralizadas, fetichizadas. Mas esse jogo é imediatamente desfeito pela consciência do espectador de que se trata de uma criança. O desconforto é parte essencial da obra: Mann tensiona os limites entre representação e ética, entre olhar artístico e olhar voyeurístico.
O cigarro — ainda que simbólico, de açúcar — torna-se aqui signo de passagem, de liminaridade. É o marcador de um momento de transição, não apenas da infância para a idade adulta, mas também da própria imagem como território de disputa: entre documento e encenação, entre memória íntima e crítica social.
No contexto da fotografia contemporânea, Candy Cigarette ocupa um lugar absolutamente central. Ela não apenas comenta a história da imagem e da construção social dos corpos, mas também se inscreve na longa genealogia do cigarro como metáfora da condição humana: fragilidade, desejo, autodestruição e performance.
No universo hiperlustrado da cultura americana dos anos 1960 — saturado de imagens publicitárias, fetiches de consumo e erotização industrial —, Tom Wesselmann desloca o olhar, isolando um fragmento específico do corpo feminino: os lábios entreabertos, carnudos, lascivos, que seguram um cigarro aceso.
O gesto de destacar o cigarro e os lábios — amputados do rosto, do corpo, da subjetividade — não é apenas formal. É uma operação cirúrgica sobre o imaginário. Trata-se de esculpir o desejo, mas também de torná-lo objeto: matéria, superfície, fetiche. O cigarro é protagonista visual e semântico.
O ato de fumar, deslocado para o centro da cena, não é uma prática banal — é um ritual imagético do hedonismo, uma coreografia de gestos codificados pela cultura de consumo. Fumar, nesse contexto, não é vício; é pose. Não é dependência; é performance.
A boca feminina, moldada e isolada, carrega todas as camadas de erotização presentes nas narrativas midiáticas da época — publicidade de cigarros, cinema, revistas, quadrinhos. Mas ao ampliá-la até o limite do absurdo, Wesselmann produz um efeito ambivalente: a boca não é mais boca; é um ícone. O cigarro não é mais objeto; é signo.
O desejo, na obra, não é apenas encenado. É também esvaziado de interioridade, transformado em imagem-fetiche, em commodity estética, em simulacro. E no entanto, permanece pulsando.
O gesto de Claes Oldenburg é radical. Ele desloca o olhar do objeto de desejo — o cigarro aceso, fumado, ostentado — para seu resto, seu dejeto, seu resíduo. A bituca — essa fração esquecida, essa sobra suja, ordinária, vulgar — se torna aqui objeto de contemplação, de monumento e de escultura.
Fagend Study é a monumentalização do lixo. O que tradicionalmente pertence ao espaço do desprezível — aquilo que se joga no chão, que se esmaga com o pé, que se dissolve na calçada — é transladado para o espaço da arte, expandido, inflado, hipertrofiado até adquirir uma presença quase sublime na sua anti-nobreza. Oldenburg, associado ao movimento Pop, mas sempre um pouco à margem dele — justamente por não se limitar à estetização plana dos objetos —, opera aqui uma inversão escultural poderosa: o pequeno se torna grande, o descartável se torna permanente, o invisível se torna visível.
O estudo para a bituca, com suas dobras, suas manchas, sua materialidade flácida, simula o desgaste. Há, na escolha formal, uma atenção quase amorosa ao detalhe daquilo que, em qualquer outro contexto, seria digno apenas de nojo ou indiferença. Portanto, mais do que um comentário sobre o objeto. É uma meditação irônica sobre os ciclos de consumo, sobre a cultura do descarte, sobre a lógica de uma sociedade que produz desejo e lixo na mesma proporção.
Ao dar título a esta peça de 1993 — Stubbed Out Love, literalmente, “Amor Apagado”, “Amor Pisoteado” — Damien Hirst estabelece, desde o início, uma equivalência brutal entre o desgaste afetivo e o gesto físico de esmagar um cigarro contra uma superfície dura. Aqui, o amor não é metáfora de combustão poética, mas seu resto, sua cinza, seu fim esmagado, sujo, irrevogável.
O que se vê é uma caixa de vidro — fria, asséptica, quase clínica — onde repousam centenas de bitucas de cigarro, organizadas de maneira ostensivamente acumulativa, como se cada uma carregasse o registro de um gesto compulsivo, de um hábito reiterado até a exaustão.
Essa peça, portanto, não é apenas sobre cigarros. Ela é uma arqueologia da autodestruição afetiva, uma radiografia daquilo que resta quando a combustão do desejo se esgota. A bituca, com seu filtro manchado, torna-se aqui metáfora finalizada e brutal de vínculos que se apagam, que se pisam, que se tornam detrito emocional.
O vidro que separa espectador e objeto não funciona apenas como barreira física. Ele funciona como vitral contemporâneo — não mais janela para o transcendente, mas para a brutal imanência do vício, do desgaste e da finitude. Ao contrário da espiritualidade do vitral gótico, Hirst nos oferece um altar da decomposição: a santidade profanada da vida ordinária, onde o amor não é eternizado, mas carbonizado.
Nesta obra tardia, Penn — já consagrado como mestre do retrato e da fotografia de moda — desloca seu olhar para o chão. Literalmente. O gesto de recolher bitucas de cigarro nas ruas de Nova York se reveste aqui de uma densidade estética, poética e quase arqueológica.
A fotografia, impecavelmente composta, com fundo neutro e iluminação controlada, aproxima-se das naturezas-mortas clássicas, porém convertida numa natureza-morta contemporânea, onde o efêmero urbano substitui frutas, flores ou talheres.
Se há algo de quase científico nesse gesto — uma catalogação do lixo urbano —, há também um lirismo áspero, uma poética do dejeto. O filtro amarelado, a ponta queimada, os vestígios de saliva, terra, graxa, tudo se torna índice de um corpo ausente. Cada cigarro é, metaforicamente, um vestígio da presença humana, uma ruína miniaturizada do desejo, da ansiedade, do tédio ou da compulsão que o produziu.
Ao final, não é exagero afirmar que este trabalho oferece uma espécie de espelho invertido da modernidade: se, no século XX, o cigarro foi fetiche de glamour, charme e sedução — na publicidade, no cinema, na moda —, aqui ele aparece em sua verdade última: resto, dejeto, combustão fracassada do desejo.
Em Cherub, Lucas opera um gesto ao mesmo tempo grotesco e poético: constrói um querubim — esse anjo infantilizado e barroco, símbolo da pureza ocidental — inteiramente a partir de cigarros. O próprio material anuncia sua tensão semântica.
O tabaco, tradicionalmente associado ao prazer, ao vício, à efemeridade e à morte, reveste aqui a alegoria da inocência. A escultura, alongada e frágil, carrega uma vibração ambivalente: a leveza associada à imagem do querubim colapsa sob o peso simbólico da combustão, do desgaste e da decadência.
O cigarro, que metaforiza o sopro que se consome a si mesmo, torna-se pele, carne, membrana desse corpo angelical disfuncional. O próprio gesto de colagem — a junção de milhares de unidades idênticas, frágeis, efêmeras — constrói uma espécie de paradoxo escultórico: aquilo que deveria ser etéreo se torna opaco, disforme, carregado de ruína.
O querubim de Lucas não sobrevoa nada: ele paira no abismo entre desejo e esgotamento, entre erotismo e decomposição.
Se o título evoca o célebre princípio aristotélico — “a natureza abomina o vácuo” —, a obra o subverte com ácido sarcasmo. Um vaso sanitário, esse dispositivo liminar entre o corpo e o esgoto, aparece aqui totalmente coberto de cigarros.
O vaso — lugar do excremento, da descarga, da eliminação — torna-se altar profano do vício, do gasto, do excesso. O cigarro, que em si mesmo já é combustão de desejo e desgaste de vida, reveste o receptáculo final do corpo: onde tudo que não serve mais é eliminado.
Há aqui uma poética do excesso, uma gramática da repulsa. O cigarro, mais uma vez, funciona como metonímia da presença ausente: vestígio da boca, da mão, da respiração, do corpo que suga, traga, consome e descarta. Lucas literaliza essa contradição: onde deveria haver limpeza, escoamento, purificação (o vaso sanitário), ela instala a combustão congelada dos cigarros, saturando o espaço do resíduo com outro resíduo.