“Mury Através do Espelho
Por Guilherme Gutman



O que vê Alexandre Mury quando olha para um de seus trabalhos?
O que é experimentado ao se ver Mury retratado em uma de suas obras?
O que vê Mury – do lado de dentro de uma de suas fotos – no olhar de quem o observa?


Estar diante de uma das fotos de Alexandre Mury não é experiência da qual se possa sair indiferente; quer dizer, não é possível atravessá-la sem sentir um impacto ao qual se reage imediatamente – com espanto, estranheza ou encanto – ou que se absorve aos poucos, meditando-a, deixando que toda experiência se desloque até se assentar numa síntese final.


Não que seus trabalhos possam ser absorvidos suavemente, embora haja suavidade em sua obra; especialmente em sua nudez, que é forte e presente, mas não agride, que pode ser erotizada sem que seja ostentosa, e que em sua melhor definição (dada por ele mesmo) deve ser tal qual a nudez “que uma criança pudesse ver”.


Talvez como efeito natural de sua força, há, em cada uma de suas fotos, um convite para que o espectador se posicione em relação aos personagens colocados em cena. Identificações e distanciamentos que orbitam em torno de uma das marcas de sua produção: a referência a determinadas obras – algumas, ícones da história da arte e da literatura – ou a figuras do imaginário local ou universal – como o espantalho, o saci ou a sereia – criando o efeito especialíssimo de uma familiaridade em relação a qual é preciso achar a distância, num jogo interessante.


Neste jogo – que remete à topografia de um espelho – há, claro, a relação com um predecessor. Qual seria a natureza dessa relação? Certamente não é a da cópia fiel, ainda que realizada numa outra linguagem; ao contrário, há muita inventividade nas caracterizações, na iluminação, na dramaticidade e, além disso, as referências a elementos presentes nas obras originais – as suas “gambiarras”- são sempre aproximativas, lúdicas, tropicalistas e bem humoradas. Há nelas algo de bem brasileiro, seja no seu caráter de “improviso bem pensado” (trabalho de horas, dias ou meses, meticulosamente montado e ensaiado, ainda que o efeito final seja de espontaneidade), seja na utilização de materiais que, de algum modo, fazem pensar em Lygia Clark ou em Hélio Oiticica.


Por entre tantos personagens díspares e seus cenários inusitados – o conjunto todo formando um inédito cosmorama – encontra-se conforto na presença do semblante de Mury; ele está lá para receber cada observador e para, no mesmo movimento, lançar-lhe de soslaio, um olhar que faz enigma. De dentro da obra, tal qual em sua câmara fotográfica, abre e fecha o seu obturador para, através de suas lentes, receber invertida a imagem que deixa àquele que vislumbra.




“Mury através do espelho (e o que ele encontrou por lá)”


Alexandre Mury está em cada uma de suas fotos: é possível reconhecer-lhe os traços, por debaixo das tintas, das cores e dos artefatos abundantes; a composição não economiza em nada.


Em cena, Mury protagoniza um encontro que não é com os outros personagens com os quais divide o espaço: sua relação fundamental não é tanto a da linha horizontal que configura a trama da composição, mas a de um aprofundamento verticalizado no qual, na outra ponta do fio, está o espectador. Tanto é assim, que ele sempre opta por não se colocar duas vezes na mesma cena – se em alguns trabalhos há algum tipo de multiplicação de sua própria imagem, ela sempre se dá pela utilização de um recurso: pela presença de um espelho que a duplique ou a triplique, pelo desdobramento da foto em uma série, ou mesmo pela inserção de uma foto do artista.


Ele também acerta o alvo – e amplamente – quando, recusando qualquer fixidez interpretativa, faz com que a imagem representada deslize para fora do quadro: ao retirar de seus suportes habituais as características que, mecanicamente, esperaria-se encontrar neles, Mury sustenta a atopia de seus personagens. Tomemos o caso da Duquesa Feia; nela, combinam-se o masculino e o feminino, dobrando-se um sobre o outro, o homem e a mulher. Do mesmo modo, assiste-se à possibilidadede uma sedução que, à despeito da feiúra posta em relevo, insinua-se num erotismo de seios maravilhosamente falsos.


É que o diálogo de Mury é com aquele que se dispõe a olhar-lhe com veracidade e, porque não voracidade. Os outros elementos em cena – os bonecos no Salvador Dali, por exemplo – serão sempre coadjuvantes ou figurantes; a cena, repito, é sempre protagonizada por dois: Mury e o olhar de um outro. Talvez, a partir de um certo ponto, possa haver uma certa solidão de quem olha para os trabalhos, como se Mury gentilmente se afastasse, deixando o espectador com os seus próprios fantasmas, a percorrer um fio imaginário até o momento em que – surpresa! – Mury não estará mais lá.


A esta altura, caberá a cada um contar a sua própria história, construir a narrativa dos efeitos experimentados na obra, no escândalo e na candura dos fios que lhe foram tracionados para, então, inventar, cada um, a cada vez, o que há do outro lado do espelho.


* Guilherme Gutman cursou medicina na Universidade Federal Fluminense, fez residência médica em psiquiatria, quando iniciou sua formação em psicanálise. Fez mestrado e dou- torado no instituto de Medicina social/Uerj. trabalhou em muitas instituições psiquiátricas, onde pôde aprofundar a sua compreensão das relações entre arte e loucura. É professor adjunto do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, psicanalista e autor de vários artigos e capítulos de livro. Nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro.